segunda-feira, 6 de março de 2017

O Teatro como lugar de resistência


Por Cássio Felipe





"Procura-se um corpo - Ação n°3" por Rubens Henrique


Na década de 1960, o Teatro de Resistência expressava uma arte que denunciava a repressão contra a luta armada, o papel da censura, da tortura, o arrocho salarial, o Milagre Econômico, a ascensão dos executivos e a supressão da liberdade. Inspirados nas ideias de dramaturgos como Augusto Boal, Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarniere, artistas petrolinenses trazem de volta essas discussões através de um teatro que afirma a importância da memória e atenta para os impactos da ditadura militar 50 anos depois. 


Quem está a frente desse movimento é o artista Thom Galiano, que revela o potencial da arte como instrumento de transformação da realidade social, mesmo em um cenário artístico local onde a maior dificuldade continua sendo a falta de políticas públicas para a cultura, o que prejudica a continuidade e a circulação dos trabalhos. 


Thom é Bacharel em Artes Cênicas – Direção Teatral pela UFBA (2011)e Pós-Graduado em Dança Educacional e Artes Cênicas pela CENSUPEG e, desde 1997, atua no campo artístico do Vale do São Francisco. Atualmente, é coordenador e professor do Núcleo de Teatro do SESC Petrolina, espaço experimental onde dialoga com diversos atores e grupos do Vale sobre a perspectiva de pesquisa sobre o teatro político. Além disso, é fundador da Trup Errante (2006), onde desenvolve uma poética própria embasada na improvisação do ator, na participação da platéia, nos espetáculos, no uso de recursos do meta-teatro, na intercessão de temas educativos em peças infanto-juvenis e no protagonismo do feminino no teatro. 


Segundo Thom, quando existe um diálogo entre o que se vive num dado momento, uma estética e um lugar do que se pretende dizer (um discurso), existe política. Quando um grupo reúne esses elementos para contrariar o poder vigente e tentar chegar em outro lugar, têm-se o Teatro de Resistência: um fazer artístico que dá espaço para reflexão sobre questões transgressoras, voz aos excluídos e também pretende extrapolar o discurso para firmar uma prática cidadã consciente, subversiva e atuante.

Leia a seguir em entrevista de Thom Galiano ao Blog Entre Relatos

EntreRelatos: O que lhe motivou a estudar Teatro?

Thom Galiano: Sou de uma família de artistas. Minha bisavó paterna fazia teatro na igreja, tenho um tio que tem um grupo de teatro em Petrópolis, minha cidade natal, é casado com uma atriz e os filhos deles são atores... E meu tio participa do meu imaginário desde criança. Eu o vi fazendo um palhaço e aí disse para mim mesmo que iria fazer teatro. Minha mãe e minha avó são artesãs, meu pai também faz cenários. Minha mãe e meu irmão são fotógrafos, então acaba que tem toda uma mística. Meus tios maternos trabalham com artesanato, madeira e esculturas. Então, para mim sempre foi muito fluído desde criança resolver ser ator, que era a primeira opção. Na minha época de colegial, achei que tinha que fazer uma universidade de teatro, fui atrás e entrei na UFBA, principalmente pelo desejo de encontrar  outras pessoas que estivessem interessadas nesse assunto e estar num lugar em que todo mundo está pensando e fazendo aquilo, foi muito legal.

EntreRelatos: Quais os anseios dos grupos que você atua?

Thom Galiano: O Núcleo veio primeiro. Ele é uma espécie de incubadora, uma escola, que está sempre se reinventando, dependendo das pessoas que estão lá dentro. É um lugar de encontro de pessoas que participam de vários grupos, inclusive, as pessoas que participam da Trup já compuseram o Núcleo e outras pessoas, de tantos outros grupos também. Trata-se de um lugar para pesquisar e, por isso, é uma incubadora. As pessoas ficam tempos lá e depois elas vão tecendo seu próprio percurso. A Trup é um grupo mais fechado que, em dez anos de história, dezessete pessoas diferentes ocuparam, mas que tem um pouco esse pensamento de batalhar por viver de arte. Estudar teatro é um foco da Trup, então, desde o começo as pessoas começaram a ir para a universidade a fim de estudar e tentar viver de teatro ou de coisas relacionadas, como dar aulas. Esse é um foco e eu acho que acaba fazendo um pouco de diferença. Tinha uma lógica que era difícil contornar: eu diretor/artista, nesses dois grupos, como é que produzo uma identidade para cada lugar? Esse viés político acabou determinando para o Núcleo uma estética. A Trup tem também um trabalho político, didático e um discurso reconhecidamente feminista, mas vai para outro lado e isso, hoje, gera uma identidade para cada grupo.

EntreRelatos: Qual o panorama da cena teatral local?

Thom Galiano: A maior dificuldade é a falta de políticas públicas pra cultura, tanto no âmbito municipal e estadual, quanto no nacional. A gente tem poucas injeções nesse sentido. Isso resulta numa pouca continuidade dos trabalhos e, em razão disso, gera também uma fragilidade diante do tempo que pode demandar o amadurecimento e a consistência desse trabalho. Essa possibilidade de continuação dos trabalhos depende das políticas públicas, que também podem possibilitar a circulação de peças em outros lugares: interior, escolas, periferias, enfim, poder chegar em outros públicos. Um outro problema também  é essa divisão, uma pseudodivisão das cidades. Como se as pessoas não se reconhecessem dentro de uma região e o rio fosse uma barreira que separasse a arte que é feita em Juazeiro, da arte que é feita em Petrolina e, a partir disso, se criasse uma hierarquia como se a arte fosse melhor num lugar, ou pior no outro e não se relacionassem, dificultando uma aglutinação que favoreça um empoderamento artístico, que seria muito eficaz na luta por políticas públicas para a cultura. Essa falta de mobilização e unidade da classe artística favorece muito os políticos e pessoas que detém monopólios, que não querem um movimento artístico abrangente, que gere um público pensante de algumas questões.

EntreRelatos: Como o Teatro pode ser um lugar de resistência?

Thom Galiano: Todo ato de fazer teatro é de resistência e é político. No entanto, nem tudo que é feito num palco é teatro. Existe uma diferença entre uma obra de arte e uma proposta sem comprometimento com a reflexão ou que seja puramente comércio. Então, essencialmente, o teatro é um lugar de resistência porque envolve muita gente e é difícil porque você tem que abrir espaço para o diálogo com as pessoas que estão envolvidas no processo de criação e as que estão presentes no dia da apresentação. Nesse sentido, o teatro já é um espaço dialético e dialógico muito potente. Não tem como fazer teatro sem essas ponderações. A arte teatral é sempre efêmera. No máximo, as pessoas vão ter uma memória de determinado acontecimento, diferentemente do cinema, da fotografia... O teatro prevalece na memória. Se você fez uma peça, você não é um ator, necessariamente. Você é um ator com uma carreira, após dedicar anos estudando teatro, e isso é resistir. Mas também a gente pode pensar no termo “resistência” por outra lógica, menos geral: o teatro político ou de resistência como uma postura diante dos temas e das escolhas de estéticas, que vão versar sobre temas políticos. Nesse sentido, têm-se a defesa de uma determinada ideologia e aí, nesse campo, o teatro deixa de ser fim, em si, para virar meio em razão de uma prática, um discurso. Mas existe um perigo nessa forma de fazer teatro, que é o equívoco de fazer um teatro-aula, que não atente às possibilidades de discutir temas políticos através de uma qualidade poética.

EntreRelatos: No momento em que a arte deixa de ser um instrumento de emancipação para ser apropriada pela cultura de massa numa lógica de banalização, quais são as dificuldades de se fazer Teatro de Resistência?

Thom Galiano: É preciso distinguir o que é um produto de uma lógica capitalista que usa qualquer tipo de meio para projeção de um determinado trabalho, o que é uma cultura de raiz dentro de uma sociedade e o que é arte, ou artes, pensando no mercado, em industrialização, na busca pelo aspecto homogeneizante da globalização... Esses processos geram uma singularidade diante da pluralidade de formas de fazer arte. Assim, fazer teatro de resistência é difícil porque ele não vai ser bem quisto na sociedade porque vai fazer, sobretudo, as pessoas pensarem. Logo, nem mesmo o governo tem interesse em incentivar sua existência, uma vez que é um tipo de arte que contraria qualquer ideia de alienação - aliada na tentativa de manutenção do poder. Diante dessa problemática, os grupos ou os artistas de teatro de resistência podem criar outras estratégias: não tem como viver de ingressos ou, necessariamente, de editais, mas pode-se criar formas de atrelar valor – porque a arte tem um valor - aos trabalhos em questão. Obviamente, esses caminhos não se darão por mecanismos fáceis, mas cabe a cada grupo encontrar formas de se reinventar nesse cenário: pensar em publicações ou até mesmo em trabalhos que envolvam outras áreas para além do teatro, tornando-o livre de padrões comerciais. Então, muitas vezes se fez revolução no teatro porque as pessoas não estavam preocupadas com a demanda comercial, mas sim em reinventar o fazer artístico que propunham. Agora quando artistas sobrevivem de teatro, é necessário jogar com uma lógica de mercado. Porém, esse é um assunto bem aberto. Cada lugar se recria e tem suas próprias demandas e preços a pagar.

EntreRelatos: Qual função do Teatro?

Thom Galiano: Há uma ideia de que o Teatro é um espelho de uma sociedade, reflete seus pensamentos e posturas porque o teatro versa sobre o humano e os conflitos que envolvem as relações sociais. Então, de alguma forma, quanto mais rico o teatro, no seu sentido do fazer artístico, sua prática revela todas as questões que estão postas em determinada sociedade. E quanto mais “pobre” for o teatro, no seu sentido medíocre e morto, mais revela uma sociedade não pensante, que não consegue se enxergar na ausência desse espelho, então não se tem uma autoimagem social. Logo, o teatro precisaria funcionar em todos os setores para ser eficaz em uma sociedade. Porque não adianta um teatro só vivo, mas com experiências de uma dramaturgia de outro lugar – que é um pouco a realidade da região -. Isso é importante à medida que a gente conhece o mundo, e se reconhece em outros pensamentos, mas seria importante também que os nossos dramas fossem levados à cena. Então, outra função do teatro seria nos fazer refletir sobre o que a gente é nesse momento, a partir dos lugares onde estamos.


EntreRelatos: Os anos de 1969 (decretação do AI- 5) e de 1980 (início do processo de redemocratização) foram momentos de grande concentração de montagens de textos teatrais centrados na temática de resistência. No entanto, ainda hoje, trabalhos que pretendem discutir a relação do teatro com a política e a memória se fazem presentes. O que você acha que move os grupos de hoje no interesse dessa discussão? As feridas da Ditadura Militar ainda estão abertas?


Thom Galiano: As feridas da Ditadura ainda estão abertas porque a gente teve o processo da Anistia que não culpabilizou as pessoas que tiveram participações execráveis dentro do regime. Essas pessoas não pagaram pelos crimes contra a humanidade que elas cometeram, então, se elas não pagaram por esses crimes e, se hoje vivem muito bem, com dinheiro, bens, são pessoas de “bem” para uma parcela da sociedade, então isso soa como se o que elas fizeram foi certo. Vivemos uma coerção policial que é fruto dessas medidas da Ditadura, que foi responsável por treinar todo esse serviço de tortura que ainda existe, como quando uma pessoa como o Amarildo de Souza  some em um morro do Rio, quando há uma prática de uso do saco plástico para torturar... Enfim, a polícia tem conhecimento dessas teorias de tortura a partir da Ditadura porque antes, se analisarmos a polícia brasileira, era ridículo. Eles usavam um fusquinha, não tinham domínio do uso de armas... Tanto é que no primeiro momento que os grupos de esquerda começaram a se organizar para iniciar a luta armada, foi um processo até o DOPS, a polícia especializada, a polícia militar e todas essas instituições de controle conseguirem se articular porque foi o tempo para aprenderem. Acho que os grupos existem e resistem contando essas histórias porque a gente vive sob essa égide. Existe uma diferença social muito grande e, enquanto houver essa diferença, há coisas a dizer. As pessoas não conseguem enxergar que são assaltadas por conta dessa diferença social, e não pensam no contexto da razão pela qual a pessoa chegou a assaltar. A gente vive numa sociedade onde ter é ser: ter o celular da moda, a roupa, o carro... Se você não tem nada disso, você não se encaixa. Além disso, as pessoas não têm a mesmas oportunidades para ter. Essa lógica da meritocracia e da manutenção do poder entre os coronéis ainda é muito forte e, inclusive, aqui na região. Petrolina, por exemplo, é fruto dessa lógica coronelista como a família Coelho, que muito se beneficiou da Ditadura Militar e até hoje está no poder... Então enquanto houver isso os grupos tem o que dizer, se quiserem e puderem dizer contra isso. E num nível nacional, a coisa é nesta mesma lógica. O que muda são os sobrenomes das famílias que dominam, mas se for para qualquer outra realidade, você vai ter sempre esse grau de dominação. Isso vai sempre falar.

Entre Relatos: O Núcleo de Teatro do SESC- Petrolina, o qual você coordena desde a sua origem (2005), tem um trabalho bem voltado para o teatro político de resistência. Na lista dos trabalhos anteriores estão espetáculos como a “Cena Bacante – Do Sagrado ao Profano”, o “Ensaio Curral Grande” e o “Eu Chovo!” Quais as discussões estavam presentes nesses trabalhos e como se deu o processo de criação deles?

Thom Galiano: Talvez um primeiro trabalho que a gente tenha experimentado essa postura política diante do teatro foi uma adaptação de um texto chamado “Bailei Na Curva”, do Júlio Conte, e aí a gente chamou de “Andamos Todos Iguais”(2007). O “Bailei” é um texto que fala sobre a Ditadura Militar desde o Golpe até o período de redemocratização e da Anistia. O enredo trata da relação de crianças que vão crescendo em meio ao regime militar e o modo como a repressão os abalava. Depois veio o encontro com o “Eu Chovo!”(2008), da Sylvia Orthof, uma peça para criança, mas que fala sobre luta de classes. Os trabalhos do Núcleo no primeiro momento duravam pouco tempo em razão do fluxo de entrada e saída de gente, então, montar peças com uma lógica dramática é muito complicado porque a ausência de qualquer pessoa pode desestabilizar o processo de criação. A partir da “Cena Bacante: Do Sagrado Ao Profano”(2012) a gente começou a reinventar essa formar de estar no Núcleo, permitindo que essa fluidez não reverberasse negativamente nos trabalhos. Isso também nos ligou a uma tradição do teatro de resistência, que era a criação de coringas: atores que fazem os mesmos papéis, uma estratégia do Boal diante das peças que ele estava fazendo e a algumas estratégias Brechtianas. Nessa linha veio o “Ensaio Curral Grande” (2014), um texto de Marcos Barbosa que retrata as histórias dos campos de concentração no Ceará, conhecidos como “currais do governo”, que foram criados na tentativa de conter os retirantes que migravam do sertão em direção à região de Fortaleza, fugindo da seca de 1930.  Nestes processos, a gente mergulhou laboratórios, em pesquisas, na estética, na produção do trabalho... Então cada um foi tendo suas demandas, que, invisivelmente, nos ligam a esse tipo de teatro e é como se um alimentasse o outro. Assim, o espetáculo deixa de ser um fim para ser uma parte do processo, no sentido de pesquisa.  

EntreRelatos: O trabalho de coro é um elemento presente no processo criativo desses três espetáculos, mas no ano passado, o grupo apresentou um trabalho que está mais voltado para a pesquisa de Performance – o “Procura-se um corpo – Ação N 3”, que é uma linguagem que rompe com formas tradicionais de dramaturgia que se preocupavam com uma coerência entre noções de enredo, tempo, espaço, representação... Como foi para o grupo estar diante dessa linguagem e como se deu o processo de criação da “Ação Nº 3”?

Thom Galiano: A Ação foi fruto dessa pesquisa quando a gente partiu para a montagem do “Ensaio Curral Grande” e aí nos deparamos com um tema muito pungente e sério, que tratava de uma história real – mesmo que reinventada no texto do Barbosa. Com isso, geramos um diálogo com o pessoal do “Ói Nóis Aqui Traveiz”, um grupo de Porto Alegre com mais de 40 anos de existência e muito voltado pro Teatro Político, de intervenção e de rua. Esse encontro permitiu a vinda de Tânia Farias, uma das atuadoras do grupo, onde ela desenvolveu uma residência artística que gerou a performance. O nome é “Ação Nº 3” porque é uma continuidade dos processos do “Ói Nóis”, que produziu as duas Ações anteriores. Todas essas Ações andam num limiar entre a ação política, cidadã e artística. Uma manifestação de não artistas da sociedade civil pode gerar uma estética que, por sua vez, gera um ato artístico. Ao contrário disso, uma manifestação artística dotada de um discurso gera uma ação cidadã. Então, a gente percebeu que esses dois lugares eram questões novas pro grupo, mais do que o estudo da Performance em si. A “Ação Nº 3” também tem um coro,  não um coro na voz, mas um pensamento de coro no corpo se pensarmos na sincronização dos movimentos do trabalho. Tem também uma dramaturgia, não no sentido de uma dramaturgia tradicional aristotélica, mas segue um caminho. Talvez, o fato de continuar tratando de algo que já existiu - a memória dessas pessoas que foram à luta contra a Ditadura Militar e que desapareceram fisicamente, mas que deixaram uma história - nos fez perceber a importância de contar essas histórias para que essas pessoas não desapareçam, de fato. Muitas vezes num teatro de resistência ou político se fala de um assunto para que não se esqueça de que aquilo aconteceu e para que não se repita. Boa parte da História da humanidade é repetição, só que quando as pessoas mantêm viva a memória de um tempo assustador, elas não repetem mais aquele episódio. Tem também uma questão de que o trabalho com a “Ação Nº 3” nos colocou na rua, uma experiência nova, porque quando você vai apresentar na rua o “barato” é outro: não sabíamos o público que iríamos encontrar, não tinha nenhum muro para nos proteger, o trânsito, enfim, toda a vida pulsando fora.



EntreRelatos: A “Ação N° 3” reclama as ausências deixadas pela Ditadura Militar e convida o público a pensar a importância da memória e do conhecimento da sua história (que, por vezes, não nos é contada como deveria). O que move o grupo a contar as histórias dessas ausências? Qual a importância de evocar o passado no presente?  


Thom Galiano: O fato das feridas da Ditadura Militar ainda estarem abertas e também a pouca idade que essas pessoas tinham quando desapareceram... A juventude que oferecia muito perigo à sociedade. Outra coisa que nos move a contar essas histórias é pensar que, se a política continuar tomando o rumo antidemocrático que está em voga, os próximos a serem calados somos nós, todo mundo que possa gerar pensamentos que ameace a “ordem”. E a gente já começa a ver isso, com os cortes orçamentários para as áreas de Educação e Saúde, enfim, com todas essas questões.

EntreRelatos: Neste ano, no Aldeia do Velho Chico, o grupo realizou um ensaio aberto do espetáculo “3x Plínio Marcos”, um jogo cênico feito pela costura de três textos do Plínio Marcos: “Dois perdidos Numa Noite Suja”, “Abajour Lilás” e “Navalha Na Carne”. Como foi estar diante da poética corrosiva de Plínio Marcos nesse cenário político atual? Qual a importância de falar sobre esses temas no presente através dos textos do Plínio?

Thom Galiano: Quase sempre os excluídos continuarão sendo os excluídos, independente do governo. Naturalmente, a gente não quer ouvir essas vozes, e sim deixá-las esquecidas nos guetos, becos, cantos, favelas, então é um assunto muito ácido a se tratar. Você tem que se remexer por dentro. Eu acho o Plínio contraditoriamente político dentro da sua dramaturgia, mas é um político que não revela uma sugestão no final. Isso deixa as pessoas de esquerda muito fulas porque ele não aponta o caminho: as próprias personagens dele não têm como mudar o mundo porque elas não conseguem nem mesmo mudar a vida delas. Elas se encontram num ciclo vicioso muito pesado e não veem saída nesses conflitos existenciais. Então, realmente é muito cru, muito a vida como ela é. O que aconteceu é que no nosso processo, acabamos poetizando algumas coisas do Plínio, que acaba sendo um lugar diferente de olhar para ele, mas não deixa de ser carne. Esses três textos tem uma sensação de opressão muito grande e nos quatro recortes que damos a eles, são momentos muito claros onde tem um jogo opressor-oprimido. Assim, acaba que nos reconhecemos também nesses lugares: assumindo, percebendo e dimensionando essas identidades nas nossas próprias relações sociais. Tem uma coisa de humano, que é muito forte no trabalho do Plínio, além da criação de metáforas à Ditadura Militar, com todo um jogo de relações e de tortura que podem passar despercebidos, mas que estão muito presentes na sua poética.

EntreRelatos: Qual a importância de resistir fazendo Teatro Político diante de um cenário político e social de grande impacto?

Thom Galiano: A gente não vai mais fazer as mesmas coisas que foram feitas na Ditadura Militar. O teatro foi um lugar de congregação das pessoas e de reinvenção de ideias que os próprios censores e políticos, às vezes, não conseguiam perceber, então, muita coisa passou batida, no teatro e no campo da música. Há um tempo vivemos uma ditadura, a do mercado, só que a coisa está mais acirrada e é preciso uma busca por uma revitalização enquanto artistas para lidar com isso. Nós temos o poder de tocar as pessoas pela beleza e pela vivência das coisas e, então, temos que nos jogar nisso, porque quando se conquista alguém por esses caminhos, de uma vivencia, a memória permanece nas pessoas pelo resto da vida, inquietando-as e despertando interesse em refletir seus lugares no mundo como cidadãos. A gente precisa ir para guerra mesmo, e agora, cada vez mais, diante desse governo antidemocrático e dessas posturas de ódio. É necessário unir pessoas através da arte, que é a nossa arma.

Cássio Felipe é estudante de Jornalismo em Multimeios, na UNEB

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