domingo, 12 de março de 2017

O som que vem do Quidé

Por Cássio Felipe


Território de identidade e resistência do povo negro, o bairro do Quidé tem mais de dez terreiros de candomblé e uma força cultural que transborda. Grupos de teatro, escola de samba e terreiros já foram referência para a cidade de Juazeiro. O forró  de Zé Preto reunia pessoas de tudo quanto era canto. Gente até do Salitre, território de resistência das identidades negra, indígena e sertaneja.



Hoje, grupos como o Kidé Falaê e o Afoxé Filhos de Zaze resistem à falta de políticas públicas de cultura a fim de afirmar a identidade do povo negro e reivindicar direitos negados pelo Estado e município. O grupo cultural Kidé Falaê incorpora as origens africanas e a força da música afro, de raiz, que tanto a indústria cultural e a mídia tentam ofuscar. Através da presença de uma memória negra acessada pelo som dos atabaques, os jovens, que são maioria no grupo, percebem na música, um caminho para reafirmar a identidade de povo negro.


Apresentação do Kidé Fala Aê  por comissão organizadora do Numans.
Jaqueline Silva vende cds e dvds para o pessoal da comunidade e, há dez anos, é percussionista no Kidé Falaê. “Eu via o grupo tocando e achava o máximo porque as músicas traziam coisas do dia a dia da comunidade: o preconceito contra os negros, contra os terreiros, a importância de respeitar os outros. Eu me identifiquei e achei bom porque eles quebravam o preconceito dentro do bairro”, conta a jovem.

Ronielton também toca percussão no grupo desde os nove anos de idade e, como Jaqueline, se sente muito feliz fazendo música. No começo, a família não gostava que ele participasse do grupo, só porque um dia teve uma apresentação num terreiro do bairro. Mas insistiu porque o que gosta mesmo de fazer é tocar percussão. “O pessoal disse que vou ficar doido fazendo música, mas é disso que eu gosto. Fui percebendo, no grupo, que sou negro e que o preconceito racial tem que acabar porque o negro é julgado demais. Descobri minha identidade lá. Todo mundo lá é uma família, aprendemos a respeitar os irmãos”, conta.



O produtor cultural e morador do Quidé, Márcio Ângelo Ribeiro, considera que, além de sistematizar a produção cultural do bairro, o Instituto Cultural de Arte Educação Nego D’água, NAENDA – onde surgiu o Kidé Falaê-, trouxe novas alternativas, reduzindo o índice de violência. “Aconteciam muitos assassinatos entre os jovens do bairro, então, com o NAENDA, essa pratica foi diminuindo”, conta. Ronielton ressalta que o instituto tem sido responsável por desenvolver atividades culturais com muitos jovens que estão em situação de rua e com dependência de drogas, oferecendo possibilidades de participar da cena cultural. 


Afoxé Filhos de Zaze

Outro grupo da comunidade que reafirma a resistência cultural e negra dos seus antepassados é o Afoxé Filhos de Zaze, o primeiro afoxé da cidade, que traz outros ritmos como samba, o Ijexá, a Chula e os ecos de Oió. O que ecoa da voz dos irmãos Rosa e dos atabaques de seus amigos de santo é a voz do terreiro.

O projeto é uma inciativa dos terreiros Ilê Asé Ayrá Onyndancor e Ilê Asé Ominkayodé, da família Rosa, para homenagear o babalorixá do terreiro Onyndancor, pai de Florisvaldo Rosa e José Rosa, mas também outros blocos afro como Filhos de Gandhi, Malê DeBalê, Ile Aiyê e Oludum.



Os Filhos de Zaze é um candomblé de rua, que comemora aquilo que o povo de santo pratica dentro dos terreiros, os Ilês, o ano todo. É uma forma de levar a comunidade para o circuito do carnaval. Manuel Rosa foi fundador do Onyndancor, uma casa de muita fé, que guarda uma história ancestral, por mais de 50 anos.

José diz que o objetivo do Afoxé Filhos de Zaze é levar os povos de terreiro para ocupar os espaços da sociedade que, muitas vezes, são negados ao povo negro. Então, ir ao centro da cidade se torna um ato político à medida que o povo de terreiro afirma sua existência na sociedade, reivindicando acesso às políticas públicas que efetivem suas necessidades e respeito à fé de matriz africana. Paralelo a isso, o Zaze é um convite a sociedade em geral para contribuir com a discussão da consciência negra, que é um trabalho realizado o ano inteiro, e não só no Novembro Negro.

“Por se tratar de uma comunidade periférica, as pessoas acham que, no Quidé, você não vai encontrar um bom profissional. Ele é um bairro cultural e temos brigado muito para fortalecer nossa cultura. Temos a honra de manter nossa cultura e trabalhar para incentivar a participação do nosso povo nas discussões que são pertinentes à libertação do povo negro e de terreiro”, destaca Florisvaldo Rosa.

Para ilustrar a dificuldade que o povo negro, da periferia e de terreiro têm em ocupar os espaços de poder, os irmãos lembram da resistência e da força que os povos de terreiro do Quidé tiveram que ter para realizar o oito de dezembro, dia da rainha das águas doces, Oxum, mas também dia municipal dos povos de terreiro em Juazeiro. Se não fosse pela auto-organização, resistência, bravura e união dos povos de terreiro, não teria acontecido o evento. “O povo de terreiro tem que se reconhecer de terreiro e assumir a nossa religião. Ainda tem gente que se envergonha da sua identidade e, com isso, essas pessoas perdem muito! Mas não precisamos nos envergonhar, devemos afirmar nossa identidade e lutar pelos nossos direitos. Já perdemos muita coisa e, com esse governo aí, a gente não pode perder mais”, comenta José Rosa.

De acordo com o pesquisador Cláudio Almeida, a identidade envolve várias camadas de interpretação e apropriação acerca das circunstâncias que um grupo social está inserido. “Os grupos culturais têm o papel de traduzir um discurso geral presente na mídia ou em outros meios que se apropriam desse discurso. Interpretam um discurso sobre si, a respeito do que o povo negro está vivenciando. Então, são pontas de lança nesse processo de fortalecimento da identidade negra”, alerta.  


Foto: Márcia Guena
Uma visita ao bairro do Quidé desperta a ancestralidade africana fortemente presente na cidade de Juazeiro, que possui 73% de população negra segundo o senso de 2010 do IBGE, mas que poucos reconhecem essa identidade. No entanto, ao caminhar por suas ruas, o som dos atabaques dos meninos da casa da cultura contagia o corpo e aflora sensações de pertencimento confirmadas pelos ensinamentos da mãe de santo do Ilê Bandalê Congo, Maria de Tempo, sobre saber popular, resistência, identidade e opressão –que os grupos culturais do Quidé tanto tentam romper, mas não é fácil.


Enquanto as estruturas de poder ainda não foram quebradas, Jaqueline segue vendendo seus filmes e sonhando em ser uma musicista pela vida afora, para depois voltar ao Quidé e dividir com os outros o que aprendeu. Espera também que o preconceito não exista mais na comunidade. Os irmãos Rosa também vão continuar lutando pela emancipação e afirmação do povo de terreiro. No tecer do tempo, o que se sabe é que o Quidé seguirá abrindo os caminhos.


Cássio Felipe é graduando em Jornalismo em Multimeios, na UNEB.

Reportagem realizada em novembro de 2016 e publicada em 12 de março de 2017.

Um comentário:

  1. Excelente trabalho!!!! Ouviu boas fontes e fala de um assunto fundamental para a cidade

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