Por Cássio Felipe
Território de identidade
e resistência do povo negro, o bairro do Quidé tem mais de dez terreiros de candomblé e uma
força cultural que transborda. Grupos de
teatro, escola de samba e terreiros já foram referência para a cidade de Juazeiro. O forró de Zé Preto reunia pessoas de tudo quanto era
canto. Gente até do Salitre, território de
resistência das identidades negra, indígena e sertaneja.
Hoje, grupos como o Kidé Falaê e o Afoxé Filhos
de Zaze resistem à falta de políticas públicas de cultura a fim de afirmar a identidade do povo negro e reivindicar direitos negados
pelo Estado e município. O grupo cultural Kidé
Falaê incorpora as origens africanas e a força da música afro, de raiz, que
tanto a indústria cultural e a mídia tentam ofuscar. Através da presença de uma
memória negra acessada pelo som dos atabaques, os jovens, que são maioria no
grupo, percebem na música, um caminho para reafirmar a identidade de povo
negro.
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Apresentação do Kidé Fala Aê por comissão organizadora do Numans. |
Jaqueline Silva vende cds
e dvds para o pessoal da comunidade e, há dez anos, é percussionista no Kidé Falaê. “Eu via o grupo tocando e achava o máximo porque as músicas traziam
coisas do dia a dia da comunidade: o preconceito contra os negros, contra os
terreiros, a importância de respeitar os outros. Eu me identifiquei e achei bom
porque eles quebravam o preconceito dentro do bairro”, conta a jovem.
Ronielton também toca
percussão no grupo desde os nove anos de idade e, como Jaqueline, se
sente muito feliz fazendo música. No começo, a família não gostava que ele
participasse do grupo, só porque um dia teve uma apresentação num terreiro do
bairro. Mas insistiu porque o que gosta mesmo de fazer é tocar percussão. “O
pessoal disse que vou ficar doido fazendo música, mas é disso que eu gosto. Fui
percebendo, no grupo, que sou negro e que o preconceito racial tem que acabar
porque o negro é julgado demais. Descobri minha identidade lá. Todo mundo lá é
uma família, aprendemos a respeitar os irmãos”, conta.
O produtor cultural e morador do Quidé, Márcio Ângelo Ribeiro, considera que, além de sistematizar a produção cultural
do bairro, o Instituto Cultural de Arte Educação Nego D’água, NAENDA – onde
surgiu o Kidé Falaê-, trouxe novas alternativas, reduzindo o índice de
violência. “Aconteciam muitos assassinatos entre os jovens do bairro, então, com
o NAENDA, essa pratica foi diminuindo”, conta. Ronielton ressalta que o instituto tem sido responsável por desenvolver atividades culturais com muitos jovens que estão em
situação de rua e com dependência de drogas, oferecendo possibilidades de participar da cena cultural.
Afoxé Filhos de Zaze
Outro grupo da comunidade
que reafirma a resistência cultural e negra dos seus antepassados é o Afoxé
Filhos de Zaze, o primeiro afoxé da cidade, que traz outros ritmos como samba,
o Ijexá, a Chula e os ecos de Oió. O que ecoa da voz dos irmãos Rosa e dos
atabaques de seus amigos de santo é a voz do terreiro.
O projeto é uma inciativa
dos terreiros Ilê Asé Ayrá Onyndancor e Ilê Asé Ominkayodé, da família Rosa, para homenagear o babalorixá do terreiro
Onyndancor, pai de Florisvaldo Rosa e José Rosa, mas também outros blocos afro
como Filhos de Gandhi, Malê DeBalê, Ile Aiyê e Oludum.
Os Filhos de Zaze é um candomblé
de rua, que comemora aquilo que o povo de santo pratica dentro dos terreiros,
os Ilês, o ano todo. É uma forma de levar a comunidade para o circuito do
carnaval. Manuel Rosa foi fundador do Onyndancor, uma casa de muita fé, que
guarda uma história ancestral, por mais de 50 anos.
José diz que o objetivo
do Afoxé Filhos de Zaze é levar os povos de terreiro para ocupar os espaços da
sociedade que, muitas vezes, são negados ao povo negro. Então, ir ao centro da
cidade se torna um ato político à medida que o povo de terreiro afirma sua
existência na sociedade, reivindicando acesso às políticas públicas que efetivem
suas necessidades e respeito à fé de matriz africana. Paralelo a isso, o Zaze é
um convite a sociedade em geral para contribuir com a discussão da consciência
negra, que é um trabalho realizado o ano inteiro, e não só no Novembro Negro.
“Por se tratar de uma
comunidade periférica, as pessoas acham que, no Quidé, você não vai encontrar
um bom profissional. Ele é um bairro cultural e temos brigado muito para
fortalecer nossa cultura. Temos a honra de manter nossa cultura e trabalhar para
incentivar a participação do nosso povo nas discussões que são pertinentes à
libertação do povo negro e de terreiro”, destaca Florisvaldo Rosa.
Para ilustrar a
dificuldade que o povo negro, da periferia e de terreiro têm em ocupar os
espaços de poder, os irmãos lembram da resistência e da força que os povos de
terreiro do Quidé tiveram que ter para realizar o oito de dezembro, dia da
rainha das águas doces, Oxum, mas também dia municipal dos povos de terreiro em
Juazeiro. Se não fosse pela auto-organização, resistência, bravura e união dos
povos de terreiro, não teria acontecido o evento. “O povo de terreiro tem que
se reconhecer de terreiro e assumir a nossa religião. Ainda tem gente que se
envergonha da sua identidade e, com isso, essas pessoas perdem muito! Mas não
precisamos nos envergonhar, devemos afirmar nossa identidade e lutar pelos
nossos direitos. Já perdemos muita coisa e, com esse governo aí, a gente não
pode perder mais”, comenta José Rosa.
De acordo com o
pesquisador Cláudio Almeida, a identidade envolve várias camadas de
interpretação e apropriação acerca das circunstâncias que um grupo social está
inserido. “Os grupos culturais têm o papel de traduzir um discurso geral
presente na mídia ou em outros meios que se apropriam desse discurso. Interpretam
um discurso sobre si, a respeito do que o povo negro está vivenciando. Então, são
pontas de lança nesse processo de fortalecimento da identidade negra”,
alerta.
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Foto: Márcia Guena |
Uma visita ao bairro do
Quidé desperta a ancestralidade africana fortemente presente na cidade de
Juazeiro, que possui 73% de população negra segundo o senso de 2010 do IBGE,
mas que poucos reconhecem essa identidade. No entanto, ao caminhar por suas
ruas, o som dos atabaques dos meninos da casa da cultura contagia o corpo e
aflora sensações de pertencimento confirmadas pelos ensinamentos da mãe de
santo do Ilê Bandalê Congo, Maria de Tempo, sobre saber popular, resistência,
identidade e opressão –que os grupos culturais do Quidé tanto tentam romper,
mas não é fácil.
Enquanto as estruturas de
poder ainda não foram quebradas, Jaqueline segue vendendo seus filmes e
sonhando em ser uma musicista pela vida afora, para depois voltar ao
Quidé e dividir com os outros o que aprendeu. Espera também que o preconceito
não exista mais na comunidade. Os irmãos Rosa também vão continuar lutando pela
emancipação e afirmação do povo de terreiro. No tecer do tempo, o que se sabe é
que o Quidé seguirá abrindo os caminhos.
Cássio Felipe é graduando em Jornalismo em Multimeios, na UNEB.
Reportagem realizada em novembro de 2016 e publicada em 12 de março de 2017.
Excelente trabalho!!!! Ouviu boas fontes e fala de um assunto fundamental para a cidade
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