sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Humanização Hospitalar: o ato de cativar

Por Gislaine Milca e Nayra Lima

Quinta-feira, dezoito de Agosto. Segundo andar do Hospital de Urgências e Traumas (HUT), em Petrolina. Silêncio. Corredores vazios, paredes brancas. Tudo parecia normal, até que o silêncio foi rompido com passos sutis. Entram em cena Amanda Leocádio, Jorge Andrade e Lucas Luna. 

No quartinho, enquanto se preparavam para mais uma atuação, Amanda Leocádio, Jorge e Lucas davam vida aos personagens que, nos próximos minutos, atuariam nos leitos do hospital. Maquiagem, saia, shorts, meias e nariz de palhaço. Quase tudo pronto. Pouco antes de saírem para levar um ar de leveza para aquele ambiente a luz é apagada, e ao som de uma música animada começa um ritual: o momento em que o nariz vermelho é levado ao rosto.

Neste momento o cansaço, as preocupações do dia-a-dia e o desânimo que, muitas vezes, os acompanham em alguns momentos já não existem mais. Enfim, Bibi Oteca, Txequinaudo das Estrelas e Raimundo Lambido estão prontos.

Eles fazem parte do projeto de extensão da Universidade Federal Vale do São Francisco (UNIVASF), formado por estudantes voluntários dos cursos de Enfermagem, Medicina, Psicologia e Ciências Farmacêuticas que busca intervir e modificar a realidade emocional do paciente, que merece cuidado não apenas para sarar as enfermidades do corpo. Este é o princípio do projeto de Humanização Hospitalar.

Bibi Oteca, Raimundo Lambido e Txequinaudo das Estrelas 

Os corredores ganham vida, magia e afeto com a presença do trio. A maneira particular que cada um se expressa com o corpo, como sorriem e acenam do lado de fora das portas e janelas dos leitos é um convite e, ao mesmo tempo, uma espera de acolhimento por parte do paciente - seja com um sorriso ou um chamado com as mãos - para que possam entrar. A vontade dos pacientes é respeitada, e a forma como eles correspondem ao convite – que pode ser sim ou não - é a chave para poderem atuar. No lugar que se espera rostos tristes e desesperançosos, sorrisos convidativos dos pacientes são um sinal positivo para Bibi, Txequinaudo e Raimundo entrarem nos leitos.

Primeiro leito

Raimundo Lambido mal entrou e já foi surpreendido com uma cobrança do paciente Wagner Leite, um vaqueiro apaixonado pela profissão que há 21 dias está no hospital, pois um cavalo caiu sobre ele provocando uma fratura em sua coluna. Cobrava um short que, segundo ele, Raimundo prometera. Mesmo sabendo que não tinha prometido nada - provavelmente, um colega seu - Raimundo afirmou que o short seria entregue em breve, talvez na próxima visita.

Continuaram a brincadeira. Wagner compartilha deste momento e afirma: “eu me divirto, sinto alegria. Se você tiver triste, você se alegra; se tiver com angústia, ela vai embora.” Para a esposa Fernanda Silva, que o acompanhava, o acolhimento dos palhaços “é uma coisa que extrapola o ambiente hospitalar e deixa um pouco mais divertido, foge um pouco da realidade. Parece que a gente esquece um pouquinho, só um pouquinho do hospital. Fica um ambiente agradável". 

Fernanda entendeu bem os benefícios da palhaçoterapia, uma das terapias do tratamento de humanização hospitalar. Segundo a professora do Colegiado de Enfermagem da UNIVASF e Coordenadora da UPI, Ana Dulce Batista, “existem estudos que mostram a influência da palhaçoterapia e outras diversas atividades no âmbito lúdico com efeitos na modulação hormonal do paciente, elevando os níveis de endorfinas, como a serotonina, proporcionando uma sensação de prazer, além da redução dos hormônios do estresse como o cortisol. Com isso, é reduzido o estresse no organismo como um todo, que passa a ter melhores condições de se recuperar.”

Ainda no mesmo quarto, enquanto um paciente dorme e outro recebe cuidados do pai, entre uma conversa e outra, duas senhoras, sentadas em cadeiras confortáveis, recebem de Bibi Oteca, Txequinaudo das Estrelas e Raimundo Lambido, massagem, fruta imaginária na boca e um vento - também imaginário- como se estivessem descansando em cadeiras de praia. Ninguém conseguiu ficar sério, risadas garantidas. Missão cumprida no primeiro quarto da noite.

Segundo leito 

Homens deitados mexendo em seus celulares. Raimundo Lambido logo começa a brincar com a possibilidade dos pacientes estarem assistindo jogos em seus aparelhos móveis. Ainda que, de uma forma rápida, sorridentes, eles interagem. No quarto, um enfermeiro muito conhecido, com o sorriso espontâneo, dizia que se alimentava de sono. Isto mesmo: de sono!
Nesta cena, é possível entender que a interação não é restrita aos pacientes e acompanhantes, mas acontece também com os profissionais do hospital. Desde que estejam abertos ao diálogo, o clima alegre é garantido.

Leito 209

Última visita do dia. Bibi Oteca, Txequinaudo das Estrelas e Raimundo Lambido aparecem e acenam. Surgem cores, gestos, dedicação, afeto e amor. Animação contagiante. O sorriso convidativo os chamam para entrar no quarto. Quatro mulheres muito gentis recebem aquela visita com um profundo olhar de curiosidade. Logo, foi chamado de “quarto da fofoca”, o que provocou risadas e uma longa conversa. As duas pacientes e acompanhantes disseram passar o dia observando quem passava pelos corredores. Confessavam: o prazer delas é conversar sobre a vida alheia. Uma delas contava que adorava se achar mais bonita do que as outras pessoas.

Há um dia internada no hospital, Dona Maria de Lurdes havia passado por uma cirurgia de hérnia e estava acompanhada e sob os cuidados de sua filha Luzicleide Soares. Ambas observavam atentamente o que Bibi, Txequinaudo e Raimundo Lambido expressavam através das palavras, que, aos poucos, ganhavam um ritmo de diálogo dançante. Ela  já  havia sido internada, quando precisou operar o fêmur. Com sua voz ofegante e olhar concentrado, revela o carinho pelo trio de palhaços. "Eu já esperava por eles. Sempre que venho, eles vêm ‘antar’ eu. Eles 'me alegra' e me  ‘dá’ conselho”.

As mulheres não contiveram a alegria que começou a pairar sobre o ambiente. Retribuíram com altas gargalhadas e uma  recíproca conversa. Foram cerca de 20 minutos. O fim do dia ganhou um tom mais alegre, animador e o peso da semana deu lugar à sensação de leveza e dever cumprido.

Todas as atuações são realizadas sem ensaio prévio e tudo depende da resposta recebida dos pacientes, acompanhantes e também profissionais, que dão a ponta do fio da história que se desenrolará.  

A UPI

A UPI surge como uma válvula de escape para uma realidade hospitalar que, muitas vezes, maltrata os pacientes. Um paradoxo da dor e do sorriso. E é na UPI que nasce o Clown, traduzindo do inglês, palhaço. Porém, um palhaço diferente, que não se esconde atrás de uma pintura exagerada no rosto, tampouco com fantasias estrambólicas, mas um ser ingênuo, atrapalhado e sábio, que através de pequenos traços de pintura acentua “defeitos” e a aceitação própria. “O clown não é um personagem, ele é um exagero das características próprias de cada um. É um estado energético maior”, revela Daniel Dias, aluno do curso de Enfermagem da UNIVASF, formado na 5ª turma da UPI em 2015. Nas atuações, Daniel assume a identidade de João Negresco. 

O clown carrega a sensibilidade de se relacionar com o outro, e constrói uma rede de significados durante o período de formação, que se divide em três blocos: físico, jogos e o estético. É através desta aprendizagem, que o clown garante boa performance e passa a ser colaborador de uma cultura de humanização que está crescendo.

As atuações são realizadas semanalmente nos hospitais públicos do Vale do São Francisco. Todas as vezes que atuam, os alunos escrevem um diário de bordo relatando as experiências pessoais do dia e publicam no blog do projeto.


A FORMAÇÃO DO CLOWN

Para se tornarem integrantes do projeto, os estudantes passam por algumas etapas. A primeira delas é uma carta de intenção, na qual o interessado descreve por que deseja fazer parte da UPI. Depois, se submete a uma entrevista e a um dia de vivência. Quem é selecionado passa, em seguida, por uma formação de dois dias, onde aprendem técnicas de clown. Todo o processo é acompanhado por um profissional formado na arte do palhaço.

Estudante de medicina, Amanda Leocádio, a Bibi Oteca, está na UPI há nove meses. Ela conta que, durante a formação, os alunos podem não entender muito bem o que está acontecendo. “Fazemos uma atividade, uma dinâmica, sem saber exatamente como aquilo poderá nos ajudar a atuar no hospital. No entanto, assim que você faz sua primeira atuação, percebe que, cada uma das atividades, foi importantíssima”.  
Para Amanda, alguns aprendizados são obtidos durante a formação, desde a atenção para com o outro até o trabalho em equipe. A estudante ainda enfatiza que todos passam por um processo de aceitação de si. “De acordo com nossos defeitos, montamos nossa “pele” - nossa roupa de clown. Quem é alto fica mais alto, quem é gordo fica mais gordo... tudo que você costuma esconder, agora você evidencia”. 

No último dia de formação, é feita a maquiagem e também é escolhido o nome do Clown, tudo isso de acordo com os traços marcantes de cada um. Depois de todo esse processo, estão preparados para atuar, sempre em pequenos grupos, para melhor acomodação nos quartos dos hospitais.

As atuações dos clowns são realizadas no Hospital de Urgências e Traumas em Petrolina, e dois hospitais materno-infantis, um em Petrolina, outro em Juazeiro. Todos fazem parte da rede do Sistema Único de Saúde (SUS).

HUMANIZAÇÃO HOSPITALAR

O tema humanização hospitalar foi apontado como um dos desafios para o SUS na 11ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2000. No terceiro volume do caderno HumanizaSUS, publicado pelo Ministério da Saúde, é considerado um projeto desafiador por conter em seus objetivos estratégias de mudanças tanto no modo de gestão, quanto no cuidar da saúde.

Essa preocupação de sensibilizar o sujeito enquanto humano se deu pela experimentação de novos processos na relação, profissional - paciente. Uma nova estrutura na atenção hospitalar, com inovação na rede SUS, que possibilita uma reorganização de seus processos de trabalho.

Com isto, o cuidado humanizado vai além de perceber uma patologia clínica ou mais um internamento. A humanização hospitalar inicia no momento em que o profissional respeita o espaço de interação, o contato com o outro e a reconhecer suas limitações.

Para o estudante de medicina Lucas Luna, que está no projeto há seis meses, “a UPI significa o primeiro contato com o perfil de pessoas que irei consultar daqui a alguns anos como médico, e também tem me possibilitado enxergar os pacientes como indivíduos únicos antes de qualquer diagnóstico ou doença que eles apresentem.”


Não é apenas na vida dos pacientes e acompanhantes que este projeto de humanização provoca mudanças significativas. Os estudantes também sentem a importância do projeto durante o período de formação e a maneira como mudou suas vidas depois de se tornarem integrantes.

“Durante o processo de formação, aprendemos a nos aceitar como pessoas diferentes uns dos outros, retirando as amarras sociais que muitas vezes nos reprimem de sentir o mundo ao nosso redor, de olhar no olho das pessoas no dia a dia e, principalmente, de sermos verdadeiros conosco. A mudança inicial que a palhaçoterapia trouxe para minha vida foi interna, sendo a mudança de maior expressão”, diz o estudante de medicina e coordenador do projeto Jorge Andrade, o Raimundo Lambido.

Amanda Leocádio, a Bibi Oteca, relata que a sua entrada na UPI a fez ter uma visão da prática médica muito diferente - e mais bonita. “A UPI significa entender na pele o que é a humanização na saúde. Fala-se muito sobre tratar bem o paciente, mas pouco é discutido sobre como lidar com a tristeza, com o mau-humor, com a raiva, com a frustração, com a saudade de casa, com a dor, com as diferenças. Participando da UPI, temos contato com todas essas situações”.  

Coordenadora da UPI, Ana Dulce Batista, ressalta que o projeto colabora para a formação destes alunos, pois permite incorporar atitudes como "olhar, tocar, e principalmente ouvir, dentre outras habilidades intuitivamente despertadas" para que haja a formação de um profissional de saúde apto a acolher os pacientes.

Gislaine Milca e Nayra Lima são estudantes de Jornalismo em Multimeios, da UNEB. 

5 comentários:

  1. Sou jornalista e irmã dá Bibi rsrsrs Amei a reportagem, meninas! Parabéns pelo trabalho. Bj

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    1. Oi, Thaís! Lembro que ela comentou com a gente que tem uma irmã jornalista. Que bom que você amou. Muito obrigada! <3

      Bjs

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  2. Que coisa mais linda! Parabéns Gi. Eu fiz também parte da UPI. Meu coração ainda permanece nela, no meu dia-a-dia, na prática profissional, na minha vida.
    Que nostalgia. Que clows lindos! Que matéria maravilhosa!

    Sâmara Paes
    Saminha
    Florentina

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    1. Eeeeeei! Não sabia que cê tinha participado. São uns lindos mesmo, admiro demais. Fico emocionada sempre que lembro. Obrigada! <3

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