Por Gislaine Milca e Nayra Lima
Quinta-feira, dezoito de Agosto.
Segundo andar do Hospital de Urgências e Traumas (HUT), em Petrolina. Silêncio.
Corredores vazios, paredes brancas. Tudo parecia normal, até que o silêncio foi
rompido com passos sutis. Entram em cena Amanda Leocádio, Jorge Andrade e Lucas
Luna.
No quartinho, enquanto se preparavam para mais uma atuação, Amanda Leocádio, Jorge e Lucas davam vida aos personagens que, nos próximos minutos, atuariam nos
leitos do hospital. Maquiagem, saia, shorts, meias e nariz de palhaço. Quase
tudo pronto. Pouco antes de saírem para levar um ar de leveza para aquele
ambiente a luz é apagada, e ao som de uma música animada começa um
ritual: o momento em que o nariz vermelho é levado ao rosto.
Neste momento o cansaço, as
preocupações do dia-a-dia e o desânimo que, muitas vezes, os acompanham em
alguns momentos já não existem mais. Enfim, Bibi Oteca, Txequinaudo das
Estrelas e Raimundo Lambido estão prontos.
Eles fazem parte do projeto de extensão
da Universidade Federal Vale do São Francisco (UNIVASF), formado por estudantes voluntários dos cursos de Enfermagem,
Medicina, Psicologia e Ciências Farmacêuticas que busca intervir e modificar a realidade emocional do paciente, que merece
cuidado não apenas para sarar as enfermidades do corpo. Este é o princípio do
projeto de Humanização Hospitalar.
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Bibi Oteca, Raimundo Lambido e Txequinaudo das Estrelas |
Os corredores ganham vida, magia e
afeto com a presença do trio. A maneira particular que cada um se expressa com
o corpo, como sorriem e acenam do lado de fora das portas e
janelas dos leitos é um convite e, ao mesmo tempo, uma espera de acolhimento
por parte do paciente - seja com um sorriso ou um chamado com as mãos - para
que possam entrar. A vontade dos pacientes é respeitada, e a
forma como eles correspondem ao convite – que pode ser sim ou não - é a chave
para poderem atuar. No lugar que se espera rostos tristes
e desesperançosos, sorrisos convidativos dos pacientes são um sinal positivo para Bibi,
Txequinaudo e Raimundo entrarem nos leitos.
Primeiro leito
Raimundo Lambido mal entrou e já foi
surpreendido com uma cobrança do paciente Wagner Leite, um vaqueiro apaixonado
pela profissão que há 21 dias está no hospital, pois um cavalo caiu
sobre ele provocando uma fratura em sua coluna. Cobrava um short que, segundo
ele, Raimundo prometera. Mesmo sabendo que não tinha prometido nada -
provavelmente, um colega seu - Raimundo afirmou que o short seria
entregue em breve, talvez na próxima visita.
Continuaram a brincadeira. Wagner
compartilha deste momento e afirma: “eu me divirto, sinto alegria. Se você
tiver triste, você se alegra; se tiver com angústia, ela vai embora.” Para a esposa Fernanda Silva, que o acompanhava, o acolhimento dos palhaços “é uma coisa
que extrapola o ambiente hospitalar e deixa um pouco mais divertido, foge um
pouco da realidade. Parece que a gente esquece um pouquinho, só um pouquinho do
hospital. Fica um ambiente agradável".
Fernanda entendeu bem os benefícios da
palhaçoterapia, uma das terapias do tratamento de humanização hospitalar.
Segundo a professora do Colegiado de Enfermagem da UNIVASF e Coordenadora da
UPI, Ana Dulce Batista, “existem estudos que mostram a influência da
palhaçoterapia e outras diversas atividades no âmbito lúdico com efeitos na modulação
hormonal do paciente, elevando os níveis de endorfinas, como a serotonina, proporcionando uma sensação de prazer, além da redução dos hormônios do
estresse como o cortisol. Com isso, é reduzido o estresse no organismo como um
todo, que passa a ter melhores condições de se recuperar.”
Ainda no mesmo quarto, enquanto um
paciente dorme e outro recebe cuidados do pai, entre uma conversa e outra, duas
senhoras, sentadas em cadeiras confortáveis, recebem de Bibi
Oteca, Txequinaudo das Estrelas e Raimundo Lambido, massagem, fruta imaginária
na boca e um vento - também imaginário- como se estivessem descansando em
cadeiras de praia. Ninguém conseguiu ficar sério, risadas garantidas. Missão
cumprida no primeiro quarto da noite.
Segundo leito
Homens deitados mexendo em seus
celulares. Raimundo Lambido logo começa a brincar com a possibilidade dos
pacientes estarem assistindo jogos em seus aparelhos móveis. Ainda que, de uma
forma rápida, sorridentes, eles interagem. No quarto, um enfermeiro muito
conhecido, com o sorriso espontâneo, dizia que se alimentava de sono. Isto
mesmo: de sono!
Nesta cena, é possível entender que a
interação não é restrita aos pacientes e acompanhantes, mas acontece também com
os profissionais do hospital. Desde que estejam abertos ao diálogo, o clima
alegre é garantido.
Leito 209
Última visita do dia. Bibi Oteca,
Txequinaudo das Estrelas e Raimundo Lambido aparecem e acenam. Surgem cores,
gestos, dedicação, afeto e amor. Animação contagiante. O sorriso convidativo os
chamam para entrar no quarto. Quatro mulheres muito gentis recebem aquela
visita com um profundo olhar de curiosidade. Logo, foi chamado de “quarto da
fofoca”, o que provocou risadas e uma longa conversa. As duas pacientes e
acompanhantes disseram passar o dia observando quem passava pelos corredores.
Confessavam: o prazer delas é conversar sobre a vida alheia. Uma delas contava
que adorava se achar mais bonita do que as outras pessoas.
Há um
dia internada no hospital, Dona Maria de Lurdes havia passado por uma cirurgia de hérnia e estava
acompanhada e sob os cuidados de sua filha Luzicleide Soares. Ambas observavam
atentamente o que Bibi, Txequinaudo e Raimundo Lambido expressavam através das
palavras, que, aos poucos, ganhavam um ritmo de diálogo dançante. Ela já
havia sido internada, quando precisou operar o fêmur. Com sua voz
ofegante e olhar concentrado, revela o carinho pelo trio de palhaços. "Eu
já esperava por eles. Sempre que venho, eles vêm ‘antar’ eu. Eles 'me
alegra' e me ‘dá’ conselho”.
As mulheres não contiveram a alegria
que começou a pairar sobre o ambiente. Retribuíram com altas gargalhadas e uma
recíproca conversa. Foram cerca de 20 minutos. O fim do dia
ganhou um tom mais alegre, animador e o peso da semana deu lugar à sensação de
leveza e dever cumprido.
Todas as atuações são realizadas sem
ensaio prévio e tudo depende da resposta recebida dos pacientes, acompanhantes
e também profissionais, que dão a ponta do fio da história que se desenrolará.
A UPI
A UPI surge como uma válvula de escape
para uma realidade hospitalar que, muitas vezes, maltrata os pacientes. Um
paradoxo da dor e do sorriso. E é na UPI que nasce o Clown, traduzindo do
inglês, palhaço. Porém, um palhaço diferente, que não se esconde atrás de uma
pintura exagerada no rosto, tampouco com fantasias estrambólicas, mas um ser
ingênuo, atrapalhado e sábio, que através de pequenos traços de pintura acentua
“defeitos” e a aceitação própria. “O clown não é um personagem, ele é um
exagero das características próprias de cada um. É um estado energético maior”,
revela Daniel Dias, aluno do curso de Enfermagem da UNIVASF, formado na 5ª
turma da UPI em 2015. Nas atuações, Daniel assume a identidade de João
Negresco.
O clown carrega a sensibilidade de se relacionar com o outro, e
constrói uma rede de significados durante o período de formação, que se divide
em três blocos: físico, jogos e o estético. É através desta aprendizagem, que o
clown garante boa performance e passa a ser colaborador de uma cultura de
humanização que está crescendo.
As atuações são realizadas semanalmente
nos hospitais públicos do Vale do São Francisco. Todas as vezes que atuam, os
alunos escrevem um diário de bordo relatando as experiências pessoais do dia e
publicam no blog do projeto.
A FORMAÇÃO DO CLOWN
Para se tornarem integrantes do
projeto, os estudantes passam por algumas etapas. A primeira delas é uma carta
de intenção, na qual o interessado descreve por que deseja fazer parte da UPI.
Depois, se submete a uma entrevista e a um dia de vivência. Quem é selecionado passa, em
seguida, por uma formação de dois dias, onde aprendem técnicas de clown. Todo o
processo é acompanhado por um profissional formado na arte do palhaço.
Estudante de medicina, Amanda
Leocádio, a Bibi Oteca, está na UPI há nove meses. Ela conta que, durante a
formação, os alunos podem não entender muito bem o que está acontecendo.
“Fazemos uma atividade, uma dinâmica, sem saber exatamente como aquilo poderá
nos ajudar a atuar no hospital. No entanto, assim que você faz sua primeira
atuação, percebe que, cada uma das atividades, foi importantíssima”.
Para Amanda, alguns aprendizados são
obtidos durante a formação, desde a atenção para com o outro até o trabalho em
equipe. A estudante ainda enfatiza que todos passam por um
processo de aceitação de si. “De acordo com nossos defeitos, montamos nossa
“pele” - nossa roupa de clown. Quem é alto fica mais alto, quem é gordo fica
mais gordo... tudo que você costuma esconder, agora você evidencia”.
No último dia de formação, é feita a
maquiagem e também é escolhido o nome do Clown, tudo isso de acordo com os
traços marcantes de cada um. Depois de todo esse processo, estão preparados
para atuar, sempre em pequenos grupos, para melhor acomodação nos quartos dos
hospitais.
As atuações dos clowns são realizadas
no Hospital de Urgências e Traumas em Petrolina, e dois hospitais
materno-infantis, um em Petrolina, outro em Juazeiro. Todos fazem parte da rede
do Sistema Único de Saúde (SUS).
HUMANIZAÇÃO HOSPITALAR
O tema humanização hospitalar foi
apontado como um dos desafios para o SUS na 11ª
Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2000. No terceiro volume do caderno
HumanizaSUS, publicado pelo Ministério da Saúde, é considerado um projeto
desafiador por conter em seus objetivos estratégias de mudanças tanto no modo
de gestão, quanto no cuidar da saúde.
Essa preocupação de sensibilizar o
sujeito enquanto humano se deu pela experimentação de novos processos na
relação, profissional - paciente. Uma nova estrutura na atenção hospitalar, com
inovação na rede SUS, que possibilita uma reorganização de seus processos de
trabalho.
Com isto, o cuidado humanizado vai além
de perceber uma patologia clínica ou mais um internamento. A humanização
hospitalar inicia no momento em que o profissional respeita o espaço de
interação, o contato com o outro e a reconhecer suas limitações.
Para o
estudante de medicina Lucas Luna, que está no projeto há seis meses, “a UPI
significa o primeiro contato com o perfil de pessoas que irei consultar daqui a
alguns anos como médico, e também tem me possibilitado enxergar os
pacientes como indivíduos únicos antes de qualquer diagnóstico ou doença que
eles apresentem.”
Não é apenas na vida dos pacientes e
acompanhantes que este projeto de humanização provoca mudanças significativas. Os
estudantes também sentem a importância do projeto durante o período de formação
e a maneira como mudou suas vidas depois de se tornarem integrantes.
“Durante o
processo de formação, aprendemos a nos aceitar como pessoas diferentes uns dos
outros, retirando as amarras sociais que muitas vezes nos reprimem de sentir o
mundo ao nosso redor, de olhar no olho das pessoas no dia a dia e,
principalmente, de sermos verdadeiros conosco. A mudança inicial que a
palhaçoterapia trouxe para minha vida foi interna, sendo a mudança de maior
expressão”, diz o estudante de medicina e coordenador do projeto Jorge Andrade,
o Raimundo Lambido.
Amanda Leocádio, a Bibi Oteca, relata
que a sua entrada na UPI a fez ter uma visão da prática médica muito diferente
- e mais bonita. “A UPI significa entender na pele o que é a humanização na
saúde. Fala-se muito sobre tratar bem o paciente, mas pouco é discutido sobre
como lidar com a tristeza, com o mau-humor, com a raiva, com a frustração, com
a saudade de casa, com a dor, com as diferenças. Participando da UPI, temos
contato com todas essas situações”.
Coordenadora da UPI, Ana Dulce Batista,
ressalta que o projeto colabora para a formação destes alunos, pois permite incorporar
atitudes como "olhar, tocar, e principalmente ouvir, dentre outras
habilidades intuitivamente despertadas" para que haja a formação de um
profissional de saúde apto a acolher os pacientes.
Gislaine Milca e Nayra Lima são estudantes de Jornalismo em Multimeios, da UNEB.
Sou jornalista e irmã dá Bibi rsrsrs Amei a reportagem, meninas! Parabéns pelo trabalho. Bj
ResponderExcluirda*
ExcluirOi, Thaís! Lembro que ela comentou com a gente que tem uma irmã jornalista. Que bom que você amou. Muito obrigada! <3
ExcluirBjs
Que coisa mais linda! Parabéns Gi. Eu fiz também parte da UPI. Meu coração ainda permanece nela, no meu dia-a-dia, na prática profissional, na minha vida.
ResponderExcluirQue nostalgia. Que clows lindos! Que matéria maravilhosa!
Sâmara Paes
Saminha
Florentina
Eeeeeei! Não sabia que cê tinha participado. São uns lindos mesmo, admiro demais. Fico emocionada sempre que lembro. Obrigada! <3
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