sábado, 27 de maio de 2017

Desafios da permanência dos estudantes indígenas na universidade

                                                                         Por: Gabriel Marinheiro de Lima


Aprender a usar a caneta e o papel é o novo campo de luta que os indígenas conquistaram para garantir os seus direitos, ao ter acesso ao ensino básico e  superior. Segundo dados do INEP de 2014, 22.030 estudantes do ensino superior no país se autodeclaram indígenas, dos quais 8.043 estavam matriculados em instituições públicas e 13.987 em instituições privadas. É um número que está aumentando, porém a educação indígena só foi assegurada no Art. 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 , mesmo já existindo estudos da Organização Internacional do Trabalho, criada nos Estados Unidos, que defendiam o acesso ao ensino desde a década de 1920.



Contudo, para manter seus estudos fora de sua aldeia de origem, os estudantes indígenas passam por muitas situações difíceis, desde a permanência do aluno na universidade à assistência estudantil para se manter financeiramente e suprir seus gastos. A depender da localidade o custo pode ser bem alto, como relata Cecília Pataxó, estudante indígena da UFBA. Há famílias que não têm condições de manter seus filhos na universidade por não ter uma boa condição financeira. Então, cabe a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) garantir a permanência do indígena na universidade, porém nem sempre a instituição cumpre com a sua obrigação.

Também não é fácil deixar a aldeia e morar na cidade, pois, muitas vezes, isso impossibilita praticar rituais e costumes do seu povo. “Muitas universidades e colegiados não têm clareza nem sensibilidade para entender os costumes, pois a espiritualidade está relacionada a nossa saúde e ancestralidade, por isso precisamos estar sempre em contato com o nosso povo e, para isso, precisamos ir a nossas aldeias exercer a prática”, ressalta Cecília Pataxó.

Estudante indígena Cecília Pataxó

Os estudantes indígenas sofrem bastante com preconceito por não apresentarem o estereótipo do índio arcaico. Os livros escolares caracterizam como alguém de cabelo liso, pele morena, que mora em oca e anda nu na mata. “Já me perguntaram se o nosso povo come gente”, relata o estudante do ensino fundamental Thiago Felipe Gomes.

Segundo a professora Ana Maria Marinheiro, situações como essa ocorrem porque o Brasil passou por um processo de miscigenação, principalmente no nordeste do país com a chegada dos invasores e dos negros africanos. “Por isso que hoje nós, povos indígenas do nordeste e ribeirinhos, sofremos preconceitos, porque hoje o nosso povo não é mais esse índio de pele morena e cabelo liso”, afirma a professora indígena.

Para Ana Maria, as escolas brasileiras devem atualizar o ensino sobre os povos indígenas e quebrar com esses estereótipos, que causam preconceitos. Pois, apesar disso, há indígenas que assumem cargos importantes e ocupam cadeiras na política brasileira. No caso de Cícero Marinheiro e Aurivam Barros, ambos vereadores da câmara legislativa de seus municípios. Aurivam, mais conhecido como Neguinho Truká, é cacique do povo Truká e foi vereador na cidade de Cabrobó-PE, já Cícero Marinheiro, cacique do povo Tumbalalá, foi vereador, presidente da câmara e foi prefeito interino do município de Abaré-BA no ano de 2016. Com todo preconceito e discriminação que os indígenas sofrem, eles ainda ocupam posições importantes em suas regiões.
Professora Ana Maria Marinheiro

Discriminação

Em alguns casos, o preconceito se transforma em discriminação por falta de conhecimento e estudos nas áreas culturais, pois o Brasil é um país cultural de várias línguas, costumes e tradições. Foi como aconteceu com o jovem Edivan Queiroz, estudante indígena da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS.

Em Julho do ano passado, ele sofreu uma abordagem agressiva por parte da polícia militar. Ele estava debaixo de uma árvore fumando a sua chanduca, uma espécie de cachimbo, quando de repente dois policias se aproximaram, revistaram-no de forma truculenta e o ameaçaram de morte. “Esse ato preconceituoso, eu acredito que é mais pelo fenótipo do indígena, que o pessoal aprende nas escolas, e o policial chegou com essa autoridade toda, que não deveria chegar com cidadão nenhum”, afirma Edivan Fulni-ô.

Outro ato de descriminação aconteceu no Restaurante Universitário da UEFS. Os estudantes indígenas, Marijane dos Santos, Letícia Monteiro, Micaely Martins e Edivan Queiroz foram abordados por colegas da universidade. O jovem começou com o discurso preconceituoso, dizendo que na residência indígena só tem negros. Muitos esquecem dos processos de miscigenação que os povos indígenas do Nordeste sofreram com seus primeiros com os invasores.

Os estudantes indígenas tentaram explicar o processo de miscigenação que o Nordeste sofreu, mas o estudante pegou o celular, virou para eles e mostrou uma foto de um índio, com a fisionomia de 1500 e disse: “índio é esse aqui”. Esse ato aconteceu no dia 29 de agosto e todos os dois atos foram denunciados a reitoria da universidade.


Mesmo com todas as dificuldades e situações que os indígenas enfrentam dentro da universidade, é importante que eles tenham acesso ao espaço acadêmico para que eles possam apresentar os seus saberes. 



“É importante que a academia escute esses saberes, que esses saberes cheguem a academia, que a academia não seja um lugar que negue a existência desses saberes”, diz o professor Juracy Marques. 

O acesso dos indígenas também vem aumentando no campo cientifico, com professores defendendo dissertações de mestrado e tese de doutorado. A finalidade é produzir ciência e promover o fortalecimento do movimento de luta indígena. “Queremos ser reconhecidos e respeitados pelos nossos conhecimentos tradicionais, mas é, na academia, que criamos estratégias para combater as violações de nossos direitos”, afirma Vanessa Barros, indígena formada em enfermagem pela UNEB.   

Gabriel Marinheiro é estudante indígena da nação Tumbalalá e estuda Jornalismo em Multimeios, na UNEB. Matéria produzida em novembro de 2016.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Terreiros: História, cultura e resistência.

Por: Bruno Rosa

O candomblé é uma religião de matriz africana, que chegou ao Brasil através dos negros escravizados. Proibida durante o período colonial, sofreu com as repressões do governo imperialista que estabelecia o cristianismo como religião oficial. Atualmente, os terreiros de candomblé guardam consigo a historia de resistência desses povos, mantendo vivo também a cultura e os costumes ancestrais.

O terreiro Ilê Ase Ayará Onyndacor tem 51 anos de história e fica localizado no bairro do Kidé, em Juazeiro. Fundado pelo já falecido Manoel Rodrigues, que deixou de herança para seus filhos Edson Rosa e Edna Rosa a missão de manter vivo o terreiro de Candomblé.




Na época de fundação do espaço, o Quidé não era considerado bairro. “O espaço que temos hoje, o terreiro Onyndacor foi escolhido pelo caboclo índio José de Alencar. Aqui era só mato, foi preciso muitas pessoas para fazer a limpeza do terreiro, não tinha água nem eletricidade”, explica Edna Rosa. Ainda segundo ela, aos poucos foram aparecendo outras casas e o que era um lugar abandonado começou a ganhar as proporções de bairro.

Ao assumir o terreiro de Candomblé no lugar de seu pai, Edna Rosa queria continuar prestando os serviços à comunidade tal como seu pai fazia, abrindo as portas para acolher os mais necessitados, uma das características da religião. ”Candomblé é acolhimento, as pessoas chegam aqui com fome e com sede e nós damos água e comida para elas. É muito emocionante quando elas contam suas historias de vida e suas dificuldades”.




A religião guarda a cultura das populações africanas, importante na preservação da história e tradição do povo negro. A dança, a culinária, a medicina e a língua são características preservadas principalmente pelos povos de terreiro, além de ser uma religião onde a sabedoria é passada de geração para geração.

Brasão Bloco Filhos de Zaze
Muitas atividades culturais são desenvolvidas no terreiro Ilê Ase Ayará Onyndacor, dentre elas estão o bloco de Afoxé filhos de Zaze, que desfila no carnaval de Juazeiro desde 2011 e carrega o título de primeiro bloco de carnaval afro do município. “É muito importante que as tradições sejam abertas a população em geral, colocar um bloco na rua não é tarefa fácil, mas a cada ano assumimos o compromisso de levar as raízes africanas para as ruas”, esclarece Edna Rosa.

Cada vez mais, o terreiro ganha visibilidade, principalmente dentro do campo acadêmico, fazendo parcerias com a Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) e com a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) para a produção cultural e trabalhos científicos. “É muito importante a união com as universidades, para que cada vez mais a nossa historia seja registrada. Dentro desse barracão já houveram apresentações de Trabalhos de Conclusão de Curso e artigos, através deles, vamos entrando cada vez mais na historia do Brasil”.

Mas o preconceito com a religião ainda é presente e casos de intolerâncias ainda são registrados. “As pessoas ainda tem a mente muito fechada para o candomblé, se apegando a estereótipos produzidos e reproduzidos, não procurando saber de fato o que é a religião. O candomblé esta sempre com as portas abertas para que qualquer um”,afirma Edna. 

Em suas palestras e falas ela sempre enfatiza a importância de ensinar aos jovens que eles precisam respeitar as diversidades culturais.

Também presente no bairro do Kidé, está o terreiro Ilê Abasy de Oiá Guenã, presidido por Adelaide Santos, conhecida como Mãe Adelaide. Este foi um dos terreiros iniciais na formação do bairro, registrando 54 anos de historia.

Entrada do terreiro Ilê Abasy de Oiá Guenã
Mãe Adelaide construiu seu terreiro no local onde só existia caatinga, na época pegava água no Rio São Francisco. Sua casa já foi de barro, madeira e tijolo, a qual lutou muito para conseguir reunir todo o material necessário, além de cuidar de seus filhos e netos.

Sua irmã foi à primeira da família a iniciar na religião, quando estava sofrendo de uma doença espiritual, e no candomblé achou a sua cura. “Depois que minha irmã fez o santo dela eu ia algumas vezes visita-la no barracão de Mãe Filhinha e quando vi já estava dançando com os outros filhos de santo e não demorou para eu fazer o meu santo também”, explica mãe Adelaide.

Quando se casou, mãe Adelaide junto com seu marido se mudaram para o local onde mora até hoje, ao lado da sua casa construiu o seu terreiro de candomblé. Na época, não existiam casas ao redor, mas as pessoas vinham dos mais diversos lugares para buscar atendimento dos assuntos espirituais.

Com muito trabalho e esforço, levantou e ampliou o seu barracão, sempre trabalhando para acolher as pessoas necessitadas que chegassem a sua porta “Nunca neguei nada às pessoas que vinham pedir minha ajuda, sempre ajudei a todos com muito carinho. Meu barracão esta sempre com as portas abertas para qualquer um que me procurar”, conta mãe Adelaide.

Mas apesar de  todo o seu trabalho duro, mãe Adelaide já foi vítima da intolerância religiosa. O terreiro já sofreu com ataques e todos os seus bens materiais quebrados. Ao todo, foram cinco vezes que seu terreiro sofreu com a intolerância das pessoas. O último ataque aconteceu em julho de 2015 e foi muito devastador. Pedras foram atiradas no telhado do terreiro e também na sua casa, as paredes foram pintadas com cruzes e imagens dos orixás foram destruídas.

Na época do apedrejamento do seu terreiro, Mãe Adelaide se recuperava de um tratamento de câncer. O episódio comoveu muitas pessoas que se comprometeram a ajuda-la na reconstrução espaço. “Na época, muita gente falou que ia me dar telhas, madeira, tijolo, cimento, mas poucas delas de fato me ajudaram. Com muito trabalho duro consegui recuperar boa parte do que foi destruído, mas ainda falta muita coisa a se fazer”.

Após a repercussão do ocorrido, um inquérito policial foi aberto para se investigar os autores desse crime, mas os culpados ainda não foram identificados. Câmeras de vigilância foram instaladas para capturar imagens de novos ataques, mas não houve registros de nenhuma violência contra o seu terreiro depois disso “É muito trise presenciar a destruição de algo que você lutou muito para conseguir levantar, mas com a força de Deus e dos Orixás vou conseguir me recuperar”.


Atualmente o terreiro Ilê Abasy de Oiá Guenã continua atendendo as pessoas que buscam pelas orações de Mãe Adelaide, que continua firme na sua caminhada de luta e resistência junto com o terreiro Ilê Ase Ayará Onyndacor e tantos outros, que tentam mostrar que a cultura das religiões de matriz africana vai permanecer sempre na história 
do país.


Bruno Rosa é estudante de Jornalismo em Multimeios, na UNEB.   

terça-feira, 11 de abril de 2017

A Medicina do Afeto

Por Victória Resende


O atendimento domiciliar é uma característica da atenção primária à saúde
Foto: Arquivo Pessoal 
Mesmo em meio aos inúmeros compromissos diários na Unidade Básica de Saúde (UBS) em que atua, o médico Wandson Padilha ainda reserva tempo para escrever sobre a sua rotina de trabalho no local. Compartilha os relatos com amigos e colegas de profissão numa rede social. Eles comentam, elogiam, contam suas próprias experiências, se emocionam e, sobretudo, se identificam.

Os laudos, as receitas e os exames dão lugar ao olhar clínico e atento do cronista. As mãos, acostumadas ao manejo do estetoscópio, do aferidor de pressão arterial, dentre outros instrumentos, percorrem o teclado do computador ou a tela do smartphone e curam o cotidiano através de palavras que revelam as sutilezas da atenção primária à saúde.       

- Padilha, beber refrigerante todo dia faz mal?
- Seu Beto, o refrigerante tem muito açúcar e sódio. Pode aumentar o açúcar do sangue, aumentar sua pressão arterial, além de vários outros problemas. Melhor tomar um suco de fruta, bastante água. O senhor não gosta de suco?
- Gosto sim, doutor.
- E que tal comprar umas frutas para preparar um suquinho?
- Padilha, eu tomava bastante suco, todos os dias. Até que minha esposa faleceu e aí eu parei de tomar porque não sei fazer, acabo comprando refrigerante mesmo. Sinto tanta falta do suco da minha velha. Todos os dias paro sozinho em casa e fico lembrando dela. Meus filhos moram longe e quase nunca os vejo. Se ao menos eu soubesse preparar um suco igual o dela...

No dia seguinte, o médico visita o Seu Beto. Sem jaleco ou equipe multidisciplinar. Ensina ao senhor de 82 anos a preparar um suco de capim-santo com limão. Não traz nenhum instrumento ou receituário em mãos. Apenas olhos e ouvidos atentos para aquela história de quase um século. "A consulta nem sempre termina dentro do consultório", conta. 

Padilha é residente do Programa de Medicina de Família e Comunidade da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). A especialidade foi reconhecida pelo Ministério da Educação em 1981, através da Comissão Nacional de Residência Médica com o nome de Medicina Geral Comunitária. Em 2002, recebeu a recente nomenclatura em proposta da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). 

O método de atenção integral e contínuo centrado na pessoa existe no mundo inteiro e carrega inúmeras denominações. Medicina de Família e Comunidade é só uma delas. No geral, a especialidade busca atender o indivíduo no contexto familiar e no contexto da comunidade em que a sua família está inserida, considerando aspectos socioculturais e econômicos. “Saúde não é somente receitar o medicamento. O que levou àquele adoecimento e o que ele representa dentro de um contexto? Os hábitos de vida interferem no processo de saúde e adoecimento das pessoas”, comenta Aristóteles Cardona, médico e coordenador do Programa de Medicina de Família e Comunidade da UNIVASF.


Padilha conduz roda de conversa com pacientes
Foto: Arquivo Pessoal
Ainda que individuais, as experiências profissionais de Padilha retratam uma realidade universal nem sempre sutil e marcada por boas lembranças como a história de Seu Beto. A medicina centrada na pessoa lhe permite perceber nuances que poderiam facilmente passar despercebidas, mas que são fundamentais para a compreensão de cada caso, desde as relações familiares às superestruturas da sociedade (como o patriarcado e o machismo, por exemplo).

- Marina*, é importante que a gente faça seu exame ginecológico para saber qual o tratamento adequado para você. Nós podemos te examinar?

(Segundo de hesitação)
        
- Não podem não, doutor.
- Vamos combinar o seguinte, então. Se os estagiários saírem e eu te examinar, tem algum problema?
- Assim pode ser, doutor. Me desculpa. Desculpa mesmo.
- Não precisa se desculpar, Marina. Eles vão sair agora.

Ao fim do exame ginecológico, Marina não apresentava dor e, diferente do que havia relatado, apresentava um corrimento característico de infecção por fungo:

- Durante a relação, você sente dor?
- Não tenho relação há mais de 13 anos, doutor. Desde que meu marido foi embora.
- Ele arranjou outra mulher?
- Foi, doutor. Mas o pior nem foi isso, o pior era o que acontecia durante o casamento.
- Ele te agredia, Marina?
- Sim. Fisicamente e sexualmente. Eu nunca contei isso. Mas eu sofro só de lembrar. Há mais de treze anos não consigo me relacionar com homem nenhum. E não falo só de namoro. Não consigo sequer conversar com um homem. Saí de vários empregos por isso. Na igreja, se algum homem senta do meu lado, eu já fico desesperada. Eu sei que tem alguma coisa errada comigo, mas não sei como resolver.

Seguindo o procedimento, Padilha lhe explicou a importância do tratamento psicoterápico para superar aquilo que sentia. Marina, que não conseguia conter o choro, aceitou que o seu médico marcasse um horário com a psicóloga da unidade de saúde do seu bairro. Confiava no cuidado e gentileza do rapaz. Só não sabia que histórias como a sua eram estímulo para que tantos profissionais da área continuassem lutando para transformar o Sistema Único de Saúde (SUS) e torná-lo mais humanizado e acessível à população.

Segundo Aristóteles Cardona, a Estratégia Saúde da Família (ESF), implementada ainda na década de 90, foi essencial na compreensão da atenção básica como ordenadora do sistema público de saúde. Em números, significa dizer que 80% dos problemas de saúde da população podem ser resolvidos na atenção primária. Daí a importância da Medicina de Família e Comunidade para o fortalecimento do SUS. “É uma especialidade cuja proposta é o estudo e preparação para a atuação no setor público, na ESF”, completa.

Outro ponto importante da ESF é o estabelecimento de uma equipe multidisciplinar no acompanhamento aos pacientes. Enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, dentistas, agentes de saúde, técnicos e auxiliares também contribuem para o trabalho realizado nas UBS. “Um entendimento mais amplo de equipe multidisciplinar é o de que os profissionais possam dialogar e estabelecer planos terapêuticos, cada qual com a sua especialidade, mas compartilhando uma visão universal”, comenta Allana Moreira, médica de Família e Comunidade e membro da Residência em Medicina de Família e Comunidade da UNIVASF. 


Foto: Arquivo Pessoal
A etapa de aprendizado não termina para os médicos de Família e Comunidade. Nos pequenos consultórios que, às vezes, funcionam de maneira precária, nas rodas de conversa realizadas nos pátios ou calçadas das UBS, ou mesmo no aconchego das casas simples das comunidades, entre cafés e conversas, os profissionais aprendem algo que não tem referência em nenhum livro: que o afeto e o cuidado curam. E são revolucionários. 

* Nome fictício 

Victória Resende é aluna de Jornalismo em Multimeios. Reportagem produzida em novembro de 2016.

domingo, 9 de abril de 2017

A liberdade nunca foi tão doce

Por Jhonatas Nilson

Nascido em Bagdá, no Iraque, Alhassan Mohammed Fahil tinha 19 anos quando soube que precisaria mudar de país para ingressar em uma vida completamente nova. Filho de um engenheiro mecânico e de uma professora de física, ele sabia que as mudanças não iriam ser fáceis a partir do momento em que entrasse no avião rumo ao desconhecido.

(Arquivo Pessoal)


A realidade era desoladora em Bagdá. O Estado Islâmico parecia assumir cada vez mais poder, dominando aos poucos cada parte da cidade e do país. Por isso, em 2014, os pais de Alhassan decidiram que já não queriam o filho exposto em uma área onde os conflitos cresciam dia após dia, fazendo com que eles tomassem uma das decisões mais difíceis das suas vidas: mandá-lo para viver sozinho em Wahan, na China.

-  No início, algumas cidades aceitaram o Estado Islâmico. Todo mundo pensou que eles iriam mudar o nosso país, mas logo começaram a criar várias regras e a matar todos que não concordavam com eles. Agora, apenas 30% de Bagdá é segura para se viver.

Nova Cultura

Hoje, aos 21 anos, ele continua morando sozinho no mesmo pequeno apartamento desde que chegou. Com certo ar nostálgico, revela que sente muitas saudades da comida de sua mãe e que ainda não conseguiu se adaptar ao cardápio do novo país.  Sendo um muçulmano praticante, tem certas dificuldades com o uso excessivo da carne de porco nos pratos chineses, pois é proibida a degustação da carne suína em sua religião.

No entanto, apesar das diferenças culturais e dos problemas culinários, ele não sentiu nenhum problema em criar amizades em seu novo lar. Todos aparentam ser muito respeitosos e não costumam esboçar nenhum preconceito em relação ao fato de ele ser estrangeiro ou por ser muçulmano. Mais do que apenas novos amigos, as pessoas que ele conheceu nos últimos dois anos acabaram por se tornar uma espécie de nova família para ele, permitindo que a experiência de viver em um novo país não se tornasse algo tão difícil de superar. No início, tudo era muito estranho e nada o fazia feliz, mas logo as coisas foram mudando e se assentando em sua cabeça, e o sentimento de aceitação surgiu com o tempo.

(Arquivo Pessoal)
No próximo verão, Alhassan irá voltar para Bagdá depois de um tempo longe da família. Mas a visita não irá durar muito, e ele ficará apenas por algumas poucas semanas em sua cidade natal. Quando estiver lá, não poderá sair de casa. Em tom decepcionado, comenta que as forças armadas do Iraque estão explodindo boa parte das cidades para expulsar o Estado Islâmico do país. A ordem do governo é a de que ninguém saia de casa e que todos que estão em cidades dominadas procurem áreas seguras o mais rápido possível.

Seus amigos iraquianos continuam mandando notícias e os fatos não são nada animadores. As fronteiras das cidades estão dominadas por membros do Estado Islâmico e é possível ver bandeiras e símbolos da organização jihadista islamita por todos os lados.

- Todas as igrejas e áreas não muçulmanas estão sendo destruídas pelo Estado Islâmico e as meninas virgens que têm mais de dezoito anos são sequestradas para serem usadas por eles.

E é dessa forma que Alhassan revela que não sente nenhuma vontade de voltar a viver no Iraque. Dividindo o seu tempo entre a faculdade de farmácia e trabalhando ocasionalmente como modelo fotográfico, já possui planos de trazer o seu irmão mais novo de dezesseis anos o mais rápido possível para viver com ele. Com orgulho, diz que pretende cuidar dele e custear todas as suas necessidades.

Quando terminamos de conversar, Alhassan faz questão de finalizar com uma frase marcante e que talvez represente o desejo de muitos dos habitantes iraquianos:

- Aqui onde estou eu sou livre.

A liberdade, apesar de tudo, nunca foi tão doce.

Jhonatas Nilson é estudante de Jornalismo em Multimeios. 

Jovens talentos do esporte de Juazeiro

Por Jaislane Ribeiro

O ano de 2016 foi considerado ‘ano olímpico’ e o Brasil foi país sede dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Ao longo das duas competições, jovens habilidosos foram revelados para o mundo. Muito desses talentos enfrentaram dificuldades para chegarem aos Jogos e conseguirem uma ‘valorização’, como Isaquias Queiroz, atleta olímpico nas provas de canoagem, e Petrucio Ferreira, paralímpico que se destacou nas provas de atletismo (corrida), ganhando três medalhas paralímpicas, sendo uma delas de ouro. 

Na cidade de Juazeiro, há muitas crianças e adolescentes com talento para o esporte, que desejam fazer parte de uma olimpíada.  


Aos 13 anos, Marília Maciel, estuda no colégio municipal Paulo VI e prática o atletismo na modalidade salto em distância. Conheceu a pratica através de um ex- professor que faleceu.  A sua primeira competição foi em 2013 nos jogos escolares da cidade. No ano seguinte, participou novamente do torneio. Em 2015, se classificou para a fase regional em Simões Filho e para a etapa nacional em Fortaleza.

Em 2016, Marília foi para a etapa nacional dos Jogos Escolares da juventude, em João Pessoa. Sua rotina diária é cansativa. Pela manhã, estuda. Treina à tarde quase todos os dias, exceto a sexta. Os treinamentos acontecem no colégio e, no final de semana, pratica o vôlei. Apesar das conquistas, a jovem atleta avalia que tem muitas dificuldades, “Falta mais apoio da escola, da prefeitura, equipamentos e lugar adequado”, afirma. Mesmo assim, sonha em continuar no esporte e um dia representar o país em uma Olimpíada.

Um menino que se ‘redescobriu’ no atletismo

Felipe Rodrigues tem 14 anos e estuda na escola Paulo VI, onde pratica atletismo (corrida) 55 metros. Conheceu a modalidade através do treinador Ramon Gabriel. Antes jogava futebol, mas o professor chamou para conhecer o atletismo. “Aí eu falei professor eu não sei correr. E ele falou, vamos tentar. E eu falei está certo, eu corri e ele viu potencial. Se não fosse o professor, não teria encontrado o atletismo”, disse Felipe. Para ele, não foi uma tarefa fácil trocar o esporte que amava por um que não conhecia.


Ele iniciou com o atletismo em 2016, participou dos jogos escolares da cidade, se classificou para a fase regional e a etapa nacional. Felipe também encontra os mesmos problemas estruturais relatados por Marília. Sua rotina é treinar todos os dias de segunda a sexta, ter uma boa alimentação e não pode praticar outros esportes para não ter lesões físicas. Estuda pela manhã, faz exercícios à tarde e descansa à noite. A rotina é árdua, mas ele tem disciplina.

 A garota dos discos


Uma menina bem determinada. É assim que se define Ana Luiza Monteiro, que estuda o oitavo ano do Colégio Paulo VI. Ela tem 13 anos e pratica lançamento de disco. Foi em 2015 que o professor e treinador Ramon, apresentou o arremesso. A princípio, conheceu o arremesso de peso e depois o de disco. “Eu lancei o disco e gostei e pedi para trocar porque não tinha nenhuma menina competindo, só tinha um menino”, disse.

Em 2016, conquistou o segundo lugar nos jogos escolares da cidade. Com o resultado, foi para a etapa regional em Simões Filho, classificando para competir a etapa nacional dos jogos da juventude. Durante a semana, Ana sai de casa cedo para ir à aula. Quando termina, volta para sua residência e depois vai novamente para escola, onde realiza os treinamentos do atletismo. No termino do treino, ela ainda faz futsal em outro local. É uma rotina intensa, mas faz com muito carinho e amor. 


Para Ana, a escola não valoriza o atletismo, só outras modalidades como Futsal e Vôlei. Ela relata que sofre preconceito por parte de seus familiares que acreditam que o arremesso de disco é um esporte para homens. “Minha família por parte de pai não gosta muito, dizem que o futsal e o atletismo não são para mulheres, que o lugar de mulher é dentro de casa. No futsal, é mais forte o preconceito. Eu escuto esses comentários que doem muito”, disse. Ana pretende seguir no esporte, depois que acabar os estudos e ser uma atleta profissional.

O observador de talentos


Ramon simplesmente observa as crianças e adolescentes no dia a dia. Foi assim que descobriu os talentos da escola. Ramon Gabriel Pereira é professor de Educação Física do colégio Paulo VI. Aos 25 anos, é treinador e incentivador dos pequenos atletas de Juazeiro. O colégio iniciou no ano de 2015 o projeto de esporte voltado para o atletismo, onde abrange todas as categorias pré mirim, mirim e o juvenil e com o trabalho a logo médio prazo. Já existem resultados satisfatórios e inéditos para a escola. Quatro atletas da equipe se classificaram para a etapa nacional dos Jogos Escolares da Juventude- JEG’s em João Pessoa.

Os estudantes Marília, Felipe, Ana Luisa e Thaísa competiram na categoria B com a faixa etária de 12 a 14 anos.  Apesar da conquista, Ramon afirma que existe dificuldades. “A questão maior é o espaço físico do colégio, temos que adaptar muito os nossos treinos. Pouquíssimas vezes a gente treina em outro lugar. Perto da competição nacional, eles treinam na academia, porque eles ganharam uma bolsa lá, foi um patrocínio de um amigo e eles fazem musculação grátis,” disse o jovem treinador.

Em relação aos custos de competições, esclareceu que, quando os jogos acontecem na cidade, a escola ajuda no transporte e lanche. Mas ele costuma pagar despesas e conta com ajuda dos amigos e familiares. “Quando há competições regionais é da responsabilidade da confederação de atletismo da Bahia e a nacional também, a diferença é que nessa é a organização nacional quem custeia os gastos dos atletas, mas os custos do treinador não,” afirma.

Uma herança Familiar


Alana Maíra tem 16 anos e estuda na escola estadual Heleno Celestino. É judoca e vem de uma família de judocas. Seu avô Paulo Afonso é um dos grandes percussores da modalidade na região. Aos oito anos de idade, Alana participou de sua primeira competição. Ela é campeã nacional pela federação SESC feminino de judô 2014 na categoria pesado. Atualmente, é campeã brasileira da CVLG na categoria peso médio 70 kg e ocupa o segundo lugar do ranking baiano na federação de judô da Bahia. Além dos títulos nacionais, a atleta coleciona há três anos consecutivos a medalha de ouro dos jogos escolares da cidade. Esse ano se classificou para a etapa regional dos jogos em Simões Filho.

Seu dia a dia é cansativo, mas não se incomoda porque faz por amor. Estuda em tempo integral, acorda às 5h30 e faz exercícios leves. Às 7h da manhã, segue para escola retornando às 16h. Descansa rapidamente e segue para academia desenvolvendo atividades de musculação. E depois para a academia de Judô isso de segunda a quinta. Os treinos são interrompidos na sexta, por ser adventista. Já no final de semana realiza uma corrida de leve, e com cuidado na alimentação.

Alana é beneficiária da bolsa atleta desde os 14 anos. O dinheiro ajuda os custos das competições. Mas, apesar do auxílio, ainda há dificuldades, pois os equipamentos e roupas da modalidade não são tão acessíveis. Ela recebe todo o apoio da sua família, o tio ajuda na técnica, a mãe na alimentação e o pai nos treinos.  Assim, todos ao seu redor ajudam de uma forma.

A atleta falou sobre a participação das mulheres no judô e os preconceitos que ainda existem “Eu acho incrível, eu fico muito triste quando amigas minhas, e colegas de treino chegam para mim e diz que vai sair porque os pais acham que o esporte e para os homens. A participação da mulher no esporte é muito importante por que todas nos temos capacidade”, disse.

Alana falou dos seus planos para o futuro. “Eu sonho em representar o Brasil em 2020, eu tenho uma meta de chegar até lá. Desde 2013 eu sonho com as olimpíadas”, afirma, com determinação.

Jaislane Ribeiro é estudante de Jornalismo em Multimeios,
Matéria realizada em novembro de 2016. 

domingo, 26 de março de 2017

Fé e luta de uma comunidade quilombola

Juliano Ferreira


Todos os anos moradores da comunidade de Barrinha da Conceição em Juazeiro se reúnem na capela para festejar a padroeira Nossa Senhora da Conceição. Entoando cânticos, acompanhado de um tambor, guitarra e ao som de fogos, a imagem da santa percorre a casa de todos os moradores todo 8 de dezembro, dia de culminância do novenário que inicia em 29 de novembro.

A moradora mais velha da comunidade, Roberta Maria dos Santos Oliveira, conta que o aldeamento do espaço começou a partir da vinda de seus antepassados de Canudos (BA) para Juazeiro. Eles fugiam da guerra que assolava a localidade, que durou de 1896 a 1897. A imagem de Nossa Senhora da Conceição foi conservada na casa da avó de Roberta, em sua casa de barro, onde realizava novenas em homenagem a santa. “Ela enfeitava a casa com correntes. Antes não tinha festa, mas as novenas”.

Roberta Maria, moradora de Barrinha da Conceição.
Foto: Adeilton Júnior/Quilombos e Sertões

O sincretismo religioso está muito presente na comunidade. Roberta lembra que havia a cultura de culto ao caboclo, nas proximidades da aldeia, mais especificamente na Ilha do Rodeador. Com pesar, ela diz que esse tipo de celebração “se acabou”, mas ainda se recorda de rituais como a chegada do caboclo “Juremeira”. Apesar do apagamento da tradição, a matriarca lembra de algumas cantigas daquele período:  

“Eu atirei, eu atirei e ninguém viu. 
Eu atirei, eu atirei e ninguém viu,
Seu Sete Flechas é quem sabe aonde a flecha caiu, 
Seu Sete Flechas é quem sabe aonde a flecha caiu”.

Hoje, a comunidade tem uma capela própria para a padroeira Nossa Senhora da Conceição. Apesar de se dizer um grupo essencialmente católico, os moradores recordam a existência de um terreiro de candomblé na aldeia. Alguns frequentaram as festas organizadas pelo pai Arlindo, já falecido.

Aos 26 anos, Larissa dos Santos Oliveira é a vice-presidente da Associação de Vizinhança de Barrinha da Conceição. Neta de Roberta, ela luta pelo reconhecimento da própria comunidade enquanto quilombola. O grupo tem aproximadamente 60 pessoas e não aceita pessoas que não  pertencem a comunidade. Os mais jovens têm dificuldade em admitir ser remanescente de quilombo, pois associam o fato ao preconceito racial.

Há algum tempo, a comunidade deixou de cultivar a terra e produzir o plantio. Hoje, a maioria da população trabalha na zona urbana de Juazeiro. Larissa explica que um dos ganhos da associação foi que o ônibus chegasse até a aldeia em horários regulares, transportando os moradores às 6h30, 12h e 17h, o que facilitou principalmente o acesso das crianças a escola, além do retorno dos trabalhadores. 

Na aldeia, não há uma escola para as crianças, tão pouco um posto de saúde próximo. Outro problema é a falta de saneamento básico. A associação pensa em implantar a agricultura familiar, construindo uma horta coletiva para os moradores, favorecendo a oportunidade de emprego e a alimentação. No entanto, não há irrigação, pois apesar da proximidade com o rio, eles não possuem um sistema para levar água às suas terras de plantio.

Quilombo

Orlando dos Santos Barros, natural de Salvador, chegou à Barrinha da Conceição para ajudar na construção do centro comunitário em meados de 2009. Casou-se com uma das netas de Dona Roberta, teve um filho e trabalha como supervisor de iluminação pública na Prefeitura de Juazeiro. Quando passou a morar em Barrinha, foi escolhido para ser o presidente Associação Comunitária dos Lavradores e Quilombolas de Barrinha da Conceição conhecida pelo nome fantasia de “Nossa Gente Quilombola”.

Após assumir o cargo de presidente, tomou conhecimento de que já existiam outras comunidades remanescentes de quilombo como Rodeador, Curral Novo, Quipá, Alagadiço, Passagem, Capim de Raiz, Angico, Deus Dará, Junco, Pau Preto e Barrinha do Cambão.

Assim como a história do surgimento da comunidade, no qual os antepassados, negros, estavam fugindo da guerra de Canudos. Barros destaca que a maioria das comunidades quilombolas não se reconhece como tal. Segundo ele, os moradores têm uma visão deturpada do ser remanescente de quilombo. E quando se afirmam o fazem inconscientemente, pois não sabem o que significa ser povo de quilombo. Orlando alerta ainda, que as manifestações culturais existentes na comunidade como o Samba de Veio e o terreiro de caboclo se perderam ao longo dos anos. As manifestações que não foram extintos passam por um processo de enfraquecimento como o rosário, feito em homenagem a Nossa Senhora da Conceição.

Diante de todos esses relatos é perceptível a falta de políticas públicas que abarquem e facilitem a permanência da tradição de comunidades remanescentes de quilombo como em Barrinha da Conceição. Apesar de ainda conservarem certa tradição, como a festa da padroeira do local, muito da cultura relembrada pela matriarca Roberta se perdeu com o tempo. Até mesmo a história da aldeia se vê na eminência de ser esquecida, já que é apenas a idosa que sabe narrar a história do seu povo.

                                                                      Juliano Ferreira é estudante de Jornalismo em Multimeios