terça-feira, 11 de abril de 2017

A Medicina do Afeto

Por Victória Resende


O atendimento domiciliar é uma característica da atenção primária à saúde
Foto: Arquivo Pessoal 
Mesmo em meio aos inúmeros compromissos diários na Unidade Básica de Saúde (UBS) em que atua, o médico Wandson Padilha ainda reserva tempo para escrever sobre a sua rotina de trabalho no local. Compartilha os relatos com amigos e colegas de profissão numa rede social. Eles comentam, elogiam, contam suas próprias experiências, se emocionam e, sobretudo, se identificam.

Os laudos, as receitas e os exames dão lugar ao olhar clínico e atento do cronista. As mãos, acostumadas ao manejo do estetoscópio, do aferidor de pressão arterial, dentre outros instrumentos, percorrem o teclado do computador ou a tela do smartphone e curam o cotidiano através de palavras que revelam as sutilezas da atenção primária à saúde.       

- Padilha, beber refrigerante todo dia faz mal?
- Seu Beto, o refrigerante tem muito açúcar e sódio. Pode aumentar o açúcar do sangue, aumentar sua pressão arterial, além de vários outros problemas. Melhor tomar um suco de fruta, bastante água. O senhor não gosta de suco?
- Gosto sim, doutor.
- E que tal comprar umas frutas para preparar um suquinho?
- Padilha, eu tomava bastante suco, todos os dias. Até que minha esposa faleceu e aí eu parei de tomar porque não sei fazer, acabo comprando refrigerante mesmo. Sinto tanta falta do suco da minha velha. Todos os dias paro sozinho em casa e fico lembrando dela. Meus filhos moram longe e quase nunca os vejo. Se ao menos eu soubesse preparar um suco igual o dela...

No dia seguinte, o médico visita o Seu Beto. Sem jaleco ou equipe multidisciplinar. Ensina ao senhor de 82 anos a preparar um suco de capim-santo com limão. Não traz nenhum instrumento ou receituário em mãos. Apenas olhos e ouvidos atentos para aquela história de quase um século. "A consulta nem sempre termina dentro do consultório", conta. 

Padilha é residente do Programa de Medicina de Família e Comunidade da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). A especialidade foi reconhecida pelo Ministério da Educação em 1981, através da Comissão Nacional de Residência Médica com o nome de Medicina Geral Comunitária. Em 2002, recebeu a recente nomenclatura em proposta da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). 

O método de atenção integral e contínuo centrado na pessoa existe no mundo inteiro e carrega inúmeras denominações. Medicina de Família e Comunidade é só uma delas. No geral, a especialidade busca atender o indivíduo no contexto familiar e no contexto da comunidade em que a sua família está inserida, considerando aspectos socioculturais e econômicos. “Saúde não é somente receitar o medicamento. O que levou àquele adoecimento e o que ele representa dentro de um contexto? Os hábitos de vida interferem no processo de saúde e adoecimento das pessoas”, comenta Aristóteles Cardona, médico e coordenador do Programa de Medicina de Família e Comunidade da UNIVASF.


Padilha conduz roda de conversa com pacientes
Foto: Arquivo Pessoal
Ainda que individuais, as experiências profissionais de Padilha retratam uma realidade universal nem sempre sutil e marcada por boas lembranças como a história de Seu Beto. A medicina centrada na pessoa lhe permite perceber nuances que poderiam facilmente passar despercebidas, mas que são fundamentais para a compreensão de cada caso, desde as relações familiares às superestruturas da sociedade (como o patriarcado e o machismo, por exemplo).

- Marina*, é importante que a gente faça seu exame ginecológico para saber qual o tratamento adequado para você. Nós podemos te examinar?

(Segundo de hesitação)
        
- Não podem não, doutor.
- Vamos combinar o seguinte, então. Se os estagiários saírem e eu te examinar, tem algum problema?
- Assim pode ser, doutor. Me desculpa. Desculpa mesmo.
- Não precisa se desculpar, Marina. Eles vão sair agora.

Ao fim do exame ginecológico, Marina não apresentava dor e, diferente do que havia relatado, apresentava um corrimento característico de infecção por fungo:

- Durante a relação, você sente dor?
- Não tenho relação há mais de 13 anos, doutor. Desde que meu marido foi embora.
- Ele arranjou outra mulher?
- Foi, doutor. Mas o pior nem foi isso, o pior era o que acontecia durante o casamento.
- Ele te agredia, Marina?
- Sim. Fisicamente e sexualmente. Eu nunca contei isso. Mas eu sofro só de lembrar. Há mais de treze anos não consigo me relacionar com homem nenhum. E não falo só de namoro. Não consigo sequer conversar com um homem. Saí de vários empregos por isso. Na igreja, se algum homem senta do meu lado, eu já fico desesperada. Eu sei que tem alguma coisa errada comigo, mas não sei como resolver.

Seguindo o procedimento, Padilha lhe explicou a importância do tratamento psicoterápico para superar aquilo que sentia. Marina, que não conseguia conter o choro, aceitou que o seu médico marcasse um horário com a psicóloga da unidade de saúde do seu bairro. Confiava no cuidado e gentileza do rapaz. Só não sabia que histórias como a sua eram estímulo para que tantos profissionais da área continuassem lutando para transformar o Sistema Único de Saúde (SUS) e torná-lo mais humanizado e acessível à população.

Segundo Aristóteles Cardona, a Estratégia Saúde da Família (ESF), implementada ainda na década de 90, foi essencial na compreensão da atenção básica como ordenadora do sistema público de saúde. Em números, significa dizer que 80% dos problemas de saúde da população podem ser resolvidos na atenção primária. Daí a importância da Medicina de Família e Comunidade para o fortalecimento do SUS. “É uma especialidade cuja proposta é o estudo e preparação para a atuação no setor público, na ESF”, completa.

Outro ponto importante da ESF é o estabelecimento de uma equipe multidisciplinar no acompanhamento aos pacientes. Enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, dentistas, agentes de saúde, técnicos e auxiliares também contribuem para o trabalho realizado nas UBS. “Um entendimento mais amplo de equipe multidisciplinar é o de que os profissionais possam dialogar e estabelecer planos terapêuticos, cada qual com a sua especialidade, mas compartilhando uma visão universal”, comenta Allana Moreira, médica de Família e Comunidade e membro da Residência em Medicina de Família e Comunidade da UNIVASF. 


Foto: Arquivo Pessoal
A etapa de aprendizado não termina para os médicos de Família e Comunidade. Nos pequenos consultórios que, às vezes, funcionam de maneira precária, nas rodas de conversa realizadas nos pátios ou calçadas das UBS, ou mesmo no aconchego das casas simples das comunidades, entre cafés e conversas, os profissionais aprendem algo que não tem referência em nenhum livro: que o afeto e o cuidado curam. E são revolucionários. 

* Nome fictício 

Victória Resende é aluna de Jornalismo em Multimeios. Reportagem produzida em novembro de 2016.

0 comentários:

Postar um comentário