Por Victória Resende
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O atendimento domiciliar é uma característica da atenção primária à saúde
Foto: Arquivo Pessoal |
Mesmo em meio aos inúmeros compromissos
diários na Unidade Básica de Saúde (UBS) em que atua, o médico Wandson Padilha
ainda reserva tempo para escrever sobre a sua rotina de trabalho no local. Compartilha os relatos com amigos e colegas de profissão numa rede social. Eles comentam, elogiam, contam suas próprias experiências, se emocionam e,
sobretudo, se identificam.
Os laudos, as receitas e os exames dão
lugar ao olhar clínico e atento do cronista. As mãos, acostumadas ao manejo do
estetoscópio, do aferidor de pressão arterial, dentre outros instrumentos,
percorrem o teclado do computador ou a tela do smartphone e curam o cotidiano
através de palavras que revelam as sutilezas da atenção primária à saúde.
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Padilha, beber refrigerante todo dia faz mal?
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Seu Beto, o refrigerante tem muito açúcar e sódio. Pode aumentar o açúcar do
sangue, aumentar sua pressão arterial, além de vários outros problemas. Melhor
tomar um suco de fruta, bastante água. O senhor não gosta de suco?
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Gosto sim, doutor.
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E que tal comprar umas frutas para preparar um suquinho?
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Padilha, eu tomava bastante suco, todos os dias. Até que minha esposa faleceu e
aí eu parei de tomar porque não sei fazer, acabo comprando refrigerante mesmo.
Sinto tanta falta do suco da minha velha. Todos os dias paro sozinho em casa e
fico lembrando dela. Meus filhos moram longe e quase nunca os vejo. Se ao menos
eu soubesse preparar um suco igual o dela...
No dia seguinte, o médico visita o Seu Beto. Sem jaleco ou equipe multidisciplinar. Ensina ao senhor de 82 anos a preparar um suco de capim-santo com limão. Não traz nenhum instrumento ou receituário em mãos. Apenas olhos e ouvidos atentos para aquela história de quase um século. "A consulta nem sempre termina dentro do consultório", conta.
Padilha é residente do Programa de
Medicina de Família e Comunidade da Universidade Federal do Vale do São
Francisco (UNIVASF). A especialidade foi reconhecida pelo Ministério da
Educação em 1981, através da Comissão Nacional de Residência Médica com o nome
de Medicina Geral Comunitária. Em 2002, recebeu a recente nomenclatura em
proposta da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
O método de atenção integral e contínuo
centrado na pessoa existe no mundo inteiro e carrega inúmeras denominações.
Medicina de Família e Comunidade é só uma delas. No geral, a especialidade
busca atender o indivíduo no contexto familiar e no contexto da comunidade em que
a sua família está inserida, considerando aspectos socioculturais e econômicos.
“Saúde não é somente receitar o medicamento. O que levou àquele adoecimento e o
que ele representa dentro de um contexto? Os hábitos de vida interferem no
processo de saúde e adoecimento das pessoas”, comenta Aristóteles Cardona,
médico e coordenador do Programa de Medicina de Família e Comunidade da
UNIVASF.
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Padilha conduz roda de conversa com pacientes
Foto: Arquivo Pessoal |
Ainda que individuais, as experiências
profissionais de Padilha retratam uma realidade universal nem sempre sutil e
marcada por boas lembranças como a história de Seu Beto. A medicina centrada na
pessoa lhe permite perceber nuances que poderiam facilmente passar
despercebidas, mas que são fundamentais para a compreensão de cada caso, desde
as relações familiares às superestruturas da sociedade (como o patriarcado e o
machismo, por exemplo).
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Marina*, é importante que a gente faça seu exame ginecológico para saber qual o
tratamento adequado para você. Nós podemos te examinar?
(Segundo
de hesitação)
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Não podem não, doutor.
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Vamos combinar o seguinte, então. Se os estagiários saírem e eu te examinar,
tem algum problema?
-
Assim pode ser, doutor. Me desculpa. Desculpa mesmo.
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Não precisa se desculpar, Marina. Eles vão sair agora.
Ao
fim do exame ginecológico, Marina não apresentava dor e, diferente do que havia
relatado, apresentava um corrimento característico de infecção por fungo:
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Durante a relação, você sente dor?
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Não tenho relação há mais de 13 anos, doutor. Desde que meu marido foi embora.
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Ele arranjou outra mulher?
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Foi, doutor. Mas o pior nem foi isso, o pior era o que acontecia durante o
casamento.
-
Ele te agredia, Marina?
-
Sim. Fisicamente e sexualmente. Eu nunca contei isso. Mas eu sofro só de
lembrar. Há mais de treze anos não consigo me relacionar com homem nenhum. E
não falo só de namoro. Não consigo sequer conversar com um homem. Saí de vários
empregos por isso. Na igreja, se algum homem senta do meu lado, eu já fico
desesperada. Eu sei que tem alguma coisa errada comigo, mas não sei como resolver.
Seguindo o procedimento, Padilha lhe
explicou a importância do tratamento psicoterápico para superar aquilo que
sentia. Marina, que não conseguia conter o choro, aceitou que o seu médico
marcasse um horário com a psicóloga da unidade de saúde do seu bairro. Confiava
no cuidado e gentileza do rapaz. Só não sabia que histórias como a sua eram
estímulo para que tantos profissionais da área continuassem lutando para
transformar o Sistema Único de Saúde (SUS) e torná-lo mais humanizado e
acessível à população.
Segundo Aristóteles Cardona, a Estratégia
Saúde da Família (ESF), implementada ainda na década de 90, foi essencial na
compreensão da atenção básica como ordenadora do sistema público de saúde. Em
números, significa dizer que 80% dos problemas de saúde da população podem ser
resolvidos na atenção primária. Daí a importância da Medicina de Família e
Comunidade para o fortalecimento do SUS. “É uma especialidade cuja proposta é o
estudo e preparação para a atuação no setor público, na ESF”, completa.
Outro ponto importante da ESF é o estabelecimento de uma equipe multidisciplinar no acompanhamento aos pacientes. Enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, dentistas, agentes de saúde, técnicos e auxiliares também contribuem para o trabalho realizado nas UBS. “Um entendimento mais amplo de equipe multidisciplinar é o
de que os profissionais possam dialogar e estabelecer planos terapêuticos, cada
qual com a sua especialidade, mas compartilhando uma visão universal”, comenta Allana Moreira, médica de Família e Comunidade e membro da Residência em Medicina de Família e Comunidade da UNIVASF.
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Foto: Arquivo Pessoal |
A etapa de aprendizado não termina para os médicos de Família e Comunidade. Nos pequenos consultórios que, às vezes, funcionam de maneira precária, nas rodas de conversa realizadas nos pátios ou calçadas das UBS, ou mesmo no aconchego das casas simples das comunidades, entre cafés e conversas, os profissionais aprendem algo que não tem referência em nenhum livro: que o afeto e o cuidado curam. E são revolucionários.
* Nome fictício
Victória Resende é aluna de Jornalismo em Multimeios. Reportagem produzida em novembro de 2016.
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