sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Amiga do Peito

Por Gislaine Milca

Katussia Almeida. Katu para os amigos. Kaká para as amigas do peito. Um dia de cada vez: é assim que ela vive. Aos 39 anos, é mãe solteira, negra, feminista, candomblecista, ativista do Outubro Rosa e articuladora social. Ela sabe a hora exata de uma descoberta em sua vida. 14h36min, de 29 setembro de 2016. Neste dia, foi diagnosticada com Carcinoma ductal infiltrante - a forma mais comum de câncer de mama, invasivo. Sua vida mudou. Passou a viver como se estivesse em um sonho tentando acordar. Depois de 21 dias a ficha caiu. Quando liguei para marcar a entrevista, perguntei se ela estava confortável para falar. “Sim”, disse-me convicta. Para Katussia, esta é uma forma de reforçar a luta contra o câncer e o incentivo ao cuidado com as mulheres. Katussia é forte. É de luta. Pelas mulheres. Pela vida.

Foto: Arquivo Pessoal 
Desde a infância, tudo que aconteceu em sua vida tem forte ligação com o feminino. Seus maiores exemplos de força e sabedoria foram sua mãe, dona Lurdinha, e uma tia. O prazer pela leitura foi influenciado pela tia, que a ensinou a valorizar a educação e o saber popular. Katussia cresceu vendo sua mãe cuidar dos filhos, sustentar o lar, inclusive construindo, literalmente, as paredes dos cômodos da casa. Pelas mulheres, tornou-se voluntária do Instituto de Prevenção Ivete Sangalo, em Juazeiro. A relação de Katussia com o Instituto é mais do que de amor. É uma relação de respeito, de carinho, de construção. “O que eu sou hoje, o Ivete contribuiu.” Katu foi para o Instituto logo depois que saiu de uma relação afetiva em um contexto de violência doméstica. Nessa época, sentia saudade da sua avó, que foi sua companheira. “Nesse mundo tão egoísta, de pessoas individualistas, que só correm por um objetivo, achei que precisava construir alguma coisa dentro de mim. E eu sempre quis participar das questões de mulheres”, conta.
Ela teve a oportunidade de saber mais sobre o trabalho e recebeu um convite para conhecer o instituto. Eles precisavam de alguém que quisesse de coração, sem interesse nenhum, ajudar. Conheceu e se apaixonou. “Hoje sou outra pessoa,” diz. Katussia tem um jeito bonito e diferente de ver e levar a vida. Se a maioria das pessoas vêem algo como ruim, ela dá outro significado. As mulheres, geralmente, chegam ao Instituto ansiosas, inseguras, sabendo que a mamografia aperta o peito e que vai doer. Aí que entra o papel de Katussia como voluntária. Ela sempre entra saudando a todas presentes com: "Bom dia!", "Sejam bem vindas aqui, amigas do peito!", "Vocês hoje estão ganhando mais um dia de vida!", "No dia que você cuida da saúde, Deus deposita nos seus créditos mais um dia de vida."
Geralmente, fragilizadas pelo medo da doença, as mulheres ouvem isto e começam a sorrir. Ela também brinca com as pacientes que não precisam ter medo, porque a mamografia é um aperto amigo. “A gente tem todos os apertos da vida, não é? O aperto financeiro, o aperto das dificuldades, o aperto da tristeza… e a gente não convive? Por que não conviver com o aperto amigo? É rapidinho!” O gelo da ansiedade logo é quebrado. Para Katussia, uma das coisas mais significativas no seu trabalho como voluntária é o ato de pegar na mão das pacientes. “Muitas das vezes o pegar na mão da gente é algo voluntário, mas sem muita importância. No instituto, eu descobri que quando você pega na mão daquelas mulheres você está dizendo que elas têm força, que acreditem, vai dar certo. Elas se sentem sim, mais fortes e seguras para fazerem o exame que não é fácil.” E assim, se dedicando ao cuidado, quatros anos se passaram. Muitas das transformações que teve em sua vida resultaram da convivência com as mulheres do Instituto Ivete Sangalo. “Eu sempre digo que eu não estava lá apenas sendo voluntária, eu estava aprendendo e compartilhando amor.” Ao falar sobre a mudança do estado de voluntária para voluntária-paciente, diz que foi um desafio que Deus deu. “Primeiro Ele me fez me apaixonar pelo trabalho, conhecer a dor de muitas mulheres, e hoje eu estou passando por estas mesmas dores, conhecendo todo o processo do tratamento. Mas eu estou forte, porque o amor que eu multiplicava junto com elas, hoje recebo tudo de volta.” Katussia cuidou e vai continuar cuidando das mulheres, porque é isto que a fortalece. Ela permanece dando a sua contribuição porque acredita que se afastando será pior e se sentirá doente. “Eu sei que tenho a enfermidade, ela está num estágio avançado, mas eu ainda acredito, primeiramente em Deus e nos Orixás, e muito, na minha cura.” No dia 10 de novembro do ano passado, às 7h, iniciou sua primeira quimioterapia, a primeira sessão das 18 que virão. Todo um processo de medo e angústia. Foi aí que percebeu sua importância diante daquelas várias mulheres, o conversar, o acolher. Ela conta que sempre gostou de usar lenço, sempre achou bonito, mas foi diferente quando se viu sem seus cabelos. Antes de começar a segunda quimioterapia, enquanto passava a mão na cabeça, percebeu que o cabelo estava começando a cair. Veio a angústia. Em um domingo, acordou, viu algumas falhas e decidiu que, neste dia, cortaria. Chamou duas amigas. Uma segurou o espelho e a outra começou a cortar com a máquina. “Eu me tornei essa carequinha. A minha coroa agora é o lenço, e estou pronta para o desafio.” A maioria das mulheres que têm o mesmo diagnóstico de Katu não chegam aos três anos. Ela, no entanto, está com todos os exames laboratoriais muito bons, além disso, é normal que haja redução das plaquetas com o desenvolvimento da doença, mas as dela estão ótimas, melhores ainda que no início do tratamento, chegaram até a aumentar. Ela acredita que é resultado também do amor, da positividade das pessoas. “Estou utilizando minha força, todo aprendizado que eu passava para as mulheres”, diz sorridente. Katu usa tudo que passou anteriormente às mulheres, como aplicar sua própria receita nela mesma. Recebe o carinho de muitas delas e de outras que sequer conhecem a sua história de vida, de amigos que mandam mensagens e orações. E é isto que tem fortalecido a sua caminhada. Katussia acrescenta que não pode fraquejar - e também pode porque é um direito dela - mas acredita que tem um compromisso. “Primeiro com minha vida, minha família, minha filha, minha mãe, e principalmente com a minha luta, que eu amo tanto, que é a luta pela vida das mulheres. Acho que tenho mais ainda para fazer. Então, esse propósito que Deus deu, da minha enfermidade, acredito que é um desafio para me fortalecer.” Katussia encara a quimioterapia como uma terapia. Procura manter o alto astral. Agora, se prepara para a mastectomia, procedimento de retirada de uma das mamas. “Nós somos muito mais que um par de peitos, nós somos amigas do peito mesmo. O câncer de mama vai, cada vez mais, atingir mais e mais amigas do peito, e nós precisamos não só compartilhar esse amor, mas também fortalecer essas mulheres para um momento tão difícil”.

Gislaine Milca é estudante de Jornalismo em Multimeios da UNEB

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