segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Filhos da UTI

                                                           


                                                                                                      Anette Maria Bento


Foto: Anette Maria Bento




O único colorido do quarto é um desenho feliz de duas crianças caminhando em um mundo encantado, próximo a uma casa em formato de cogumelo. A pintura poderia ser encontrada em um quarto infantil, mas, há quatro anos, é o que traz alegria a morada de Miguel na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Dom Malan, em Petrolina, quando foi diagnosticado com problemas respiratórios durante o nascimento, necessitando do aparelho que bombeia ar mecanicamente para os pulmões. 

Assim como Miguel, Joana e Lucas são moradores da UTI, referência em atendimento materno infantil pelo Sistema Único de Saúde, na região de Petrolina, Juazeiro e cidades circunvizinhas desde 2009. Mesmo com essa abrangência, tem apenas seis leitos para os primeiros 28 dias de vida do recém nascido e quatro para a ala pediátrica, que atende crianças e adolescentes com até 14 anos.

Em dezembro do ano passado, três destes berços, como é carinhosamente chamado pela equipe do setor, estão ocupados pelos pequenos moradores. Algumas vezes, a equipe médica procurou realizar o “desmame”, termo empregado para a tentativa de fazer com que se respire sem o aparelho. Sem sucesso: as crianças ficaram roxas e seus sinais vitais foram comprometidos. A ventilação mecânica é o que mantém Miguel, com quatro anos, vivo, assim como Lucas e Joana de dois anos. “É incrível a nossa preocupação em trabalhar com os dois pontos: da vida e da morte”, relata emocionada a técnica de enfermagem, Aline Brito, depois de uma noite exaustiva cuidando das crianças.

A rotina na UTI é cuidadosa. Cada detalhe, é fundamental para a manutenção do bem-estar das crianças. O papel executado pela equipe profissional traz à tona o sentimento familiar. O cuidado humanizado é percebido em pequenos detalhes, desde a touca usada por todos ali dentro, com desenhos infantis, ao carinho na cabeça das crianças, a troca diária dos lençóis e o atendimento de três em três horas durante todo o dia. É o que se chama balanço hídrico. “Este balanço consiste no controle hídrico da criança, tudo que entra e tudo que sai nela, porque é importante para o médico para prescrever medicações, a dieta, o que tira, o que não tira, o cuidado com a respiração”, explica Aline, sobre o dia a dia da equipe profissional para acompanhar as crianças na UTI.

Todo trabalho da equipe técnica é muito criterioso. Cada criança tem um prontuário com informações precisas: temperatura da incubadora ou berço, a frequência cardíaca, temperatura corporal, e toda informação do maquinário respirador, o fluxo de respiração. Outras informações são os ganhos que eles adquirem e tudo que é administrado para eles: a dieta, a nutrição parenteral, nutrição que vai pela artéria principal e não é ingerida, o soro e as medicações que estimulam os batimentos cardíacos, a respiração e a sedação. A todo momento, a ficha é avaliada pelos médicos que as acompanham.


Mães dos filhos da UTI

Na manhã ensolarada da sexta-feira de nove de dezembro, não se podia ver o sol do quarto. Duas jovens mães dormiam em macas velhas e desconfortáveis ao lado de seus filhos Lucas e Joana, enquanto eles eram embalados pelo bip dos aparelhos e pelas gotas caindo no tubo com a dieta líquida administrada naquele momento. Essa é rotina das duas desde que seus filhos nasceram. Saem dali poucas vezes ao dia, apenas para banho e as três refeições diárias oferecidas pelo hospital. Fazem daquele quarto suas casas.

A mãe do pequeno Miguel não o acompanha. Apareceu poucas vezes ao longo dos seus quatro anos. Para a médica pediátrica Nayara Lustosa, todos se solidarizam com a situação do morador mais velho da UTI pediátrica. “Ele fica sozinho. Teoricamente, ele tem cognição normal, ele ouve, vê, mas ele não vai ter isso forte porque ele não está sendo estimulado. É como se ele fosse um bebê que estivesse crescendo, mas sem nenhum estímulo. Ele quase não fala”, esclarece a médica.

Ao mesmo tempo, Nayara parabeniza a atuação da equipe de técnicas e de enfermeiras pelos cuidados intensivos e humanizados: “eu admiro demais. Elas o adotaram”. À medida que vão crescendo, os pequenos filhos da UTI vão adquirindo entendimento de espaço e tempo e, é através do carinho, que todas essas percepções são potencializadas. Para Aline, o afeto das mães, como as de Lucas e Joana, colaboram para o desenvolvimento das crianças. “São pessoas excepcionais. Elas têm o total interesse. Elas sabem como aspirar, elas sabem dar banho, elas cuidam dos seus filhos, elas se tornam defensoras deles aqui dentro”.

O cansaço do dia não permitiu que as mães tivessem condições de falar para esta reportagem. Mas o silêncio foi muito significativo. A técnica de enfermagem, Aline Brito, avisou que a madrugada havia sido difícil, pois uma criança havia dado entrada na UTI. Era um pequeno ser de seis meses que passava a ocupar o último berço colorido disponível do quarto, depois de uma súbita infecção.  

Como os berços já estão com ocupação total, nenhuma criança entre 29 dias e 14 anos poderá dar entrada na UTI. Esta é uma preocupação de toda a equipe. Administrado pelo Estado de Pernambuco, o Hospital Dom Malan controla diretamente a quantidade e a manutenção dos leitos. “Todo mês precisamos mandar uma justificativa para o estado do motivo de o paciente ainda está internado. Todo mês é a mesma justificativa: eles ainda necessitam do aparelho, não tem como dar alta”, comenta Nayara.

Miguel, Lucas e Joana são moradores crônicos, possuem patologias que os afeta diretamente por tempo indeterminado. Enquanto vivem no quarto de UTI, as mães lutam na justiça pela home care, a única possibilidade viável delas conseguirem levar seus filhos para suas casas. Este final de ano, Joana finalmente conhecerá, após dois anos na UTI, um outro lar: a sua casa.

A luta na Justiça

Transferir a criança de uma Unidade de Terapia Intensiva do hospital para o seu domicílio tem sido a luta destas mães. Há pouco meses, a mãe da pequena Joana conseguiu, através de ação no Tribunal de Justiça da Bahia, o direito de ser assistida pela home car.
Desde que a Joana veio ao mundo, Cláudia não voltou para sua cidade, Euclides da Cunha, interior da Bahia. Deixou tudo e se mudou para Petrolina para cuidar da filha. Agora, as duas poderão começar o novo ano em casa, ao lado da família biológica e dos amigos.

Joana terá um atendimento similar ao dado no hospital, com toda estrutura necessária para sua estabilidade no ambiente doméstico. “O que acontece é que existe uma empresa, que cria e coloca toda uma estrutura de UTI dentro de casa: oxigênio, ar comprimido, o ventilador, a cama, o aparelho, as sondas, todos os tubos que são utilizados na dieta, toda a alimentação da criança, as fraldas”, conta a técnica de enfermagem Aline, depois de já ter assistido a mais duas saídas de crianças em estado crônico para a casa. Além do aparato mecânico, a home care conta com o serviço profissional de médico, fisioterapeuta, enfermeiro e técnico.

Enquanto isso, Miguel e Lucas passarão mais algum tempo no berço colorido esperando o dia em que poderão ir para casa. Vivem sem nunca terem conhecido nada além daquele quarto branco cheio de aparelhos. Mas conheceram o amor e o cuidado desde cedo da equipe médica e da família. Isso tem feito essas crianças permanecerem vivas.

Há seis anos trabalhado na UTI, Aline já viu muita coisa. “Todos tem esse tabu de que quem entra na UTI vai morrer. E não é assim. A gente que trabalha em UTI, vê vida, muita vida, porque a gente vê aqui crianças em um estado impressionante, sem esperança. De repente, a criança está chorando, sorrindo, chamando papai e mamãe”, conta com os olhos marejados.

Na vida da UTI, há vida. E há muitos sonhos também. 

Anette Maria Bento é estudante de Jornalismo em Multimeios da UNEB. 

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